Vidas de papelão - as canseiras desta vida

Aleitura do último número da revista Artistas Unidos (n.º 16, Junho 2006) deixa-nos a impressão de estarmos perante um colectivo "desnorteado" e em plena "crise de identidade", obrigado pela sua condição ambulante a reinventar-se de espectáculo em espectáculo, de espaço em espaço. Explicará esta alegada crise o mergulho na religiosidade palavrosa e metafórica de António Tarantino, levando à cena Stabat Mater e Paixão Segundo João? Seja qual for a razão, em boa hora o fazem.A escrita de Tarantino é desconcertante de bela e a sua comunhão com o Convento das Mónicas é arrepiante. E este começa por ser o aspecto mais impressionante do espectáculo. A memória física do espaço é marcada pela ausência: as "Mónicas" já não são uma cadeia, já não são um Convento e a sua capela, local onde o espectáculo é apresentado, já não é uma capela. São paredes avulsas e descarnadas.
Do mesmo modo, na tessitura dramatúrgica do espectáculo é a ausência que tem lugar privilegiado. É um monólogo de uma mulher que habita a ausência: ela espera por um homem que não chega, procura um filho que não encontra, vocifera contra imigrantes que não vemos, dirige-se a interlocutores que não respondem (Maria João Luís procura-os ora na paredes vazias da capela ora no público) e deixa o centro do espaço cénico vazio (Maria João Luís aparece enclausurada à esquerda do palco, presa entre três bancos de igreja).
Em Stabat Mater tem voz uma vendedora ambulante, uma mulher de má fama, mãe solteira, uma dessas mulheres pobres que falam alto, dizem palavrões e bebem vinho pela garrafa. Maria procura e chora o seu filho, desaparecido por razões misteriosas. O cenário (partilhado por Paixão Segundo João) evoca essas cidades frágeis, feitas de caixotes de papelão, que se erguem de noite, à porta dos edifícios de pedra. Mas aqui, é a cidade inteira que é levantada. Ainda que Maria habite somente um reduzido canto do espaço cénico, Rita Lopes Alves ergue toda uma cidade, com ruas, recantos e colunas, tudo em papelão.
À declarada artificialidade da cenografia e de outros recursos (as longas pausas entre as quatro partes que compõem o texto, a lentidão das mudanças de luz, o vermelho que se instala sobre o papelão) contrapõe-se a visceralidade da interpretação de Maria João Luís - num memorável desempenho, pungente e animal - a alucinante rapidez com que despeja o texto, a jorros, ora de raiva ora de desespero, e a memória habitada do Convento das Mónicas.
Esta Maria, este Cristo ausente e todas as outras personagens que não estão lá, marroquinos, bêbados e chulos, são reminiscências trágicas, o que faz do Stabat Mater de Jorge Silva Melo a tragédia dos que vivem do lado de fora (do lado errado) do cimento.

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