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Discurso não está a ser lido com atenção, diz o Vaticano

O discurso do Papa não foi lido com atenção e não se destina a ofender os muçulmanos. Com mil cuidados na linguagem, para não agravar mais o clima de tensão que cresceu nos dois últimos dias, o director da Sala de Imprensa da Santa Sé, padre Federico Lombardi, emitiu anteontem à tarde um comunicado em que contesta a leitura feita da intervenção de Bento XVI (ver excertos nesta página). "A propósito das reacções de alguns representantes muçulmanos acerca de certas passagens do discurso do Santo Padre na Universidade de Ratisbona, é oportuno notar que - como se depreende de uma leitura atenta do texto - o que interessa ao Santo Padre é uma recusa clara e radical da motivação religiosa da violência", diz o texto.
Possivelmente, só amanhã o Papa se referirá ao caso. Bento XVI poderá aproveitar a sua alocução dominical do Angelus, ao meio-dia (11h da manhã em Lisboa), para deitar água na fervura. Não sendo de prever um pedido de desculpa formal, que alguns pediram, é provável que o Papa encontre uma fórmula que seja lida como tal.
Ontem mesmo, ouvido pela AFP, o novo responsável do Vaticano para as relações com os Estados escusou-se a falar directamente da polémica, mas disse que o diálogo entre religiões "é crucial".
No comunicado do Vaticano, Federico Lombardi acrescenta que Bento XVI nem sequer pretendia aprofundar a jihad e o pensamento muçulmano sobre o tema, e muito menos ofender a sensibilidade dos crentes muçulmanos.
O discurso, proferido terça-feira ao fim do dia na Universidade de Ratisbona (Baviera, sul da Alemanha), provocou os primeiros comentários de desagrado ainda na quinta-feira. Ontem, aumentaram o número e o tom das reacções. O Vaticano diz que a intenção de Bento XVI não era a que foi lida. E o próprio Papa Ratzinger referiu várias vezes, nas passagens do discurso referentes ao islão, que estava a "citar" passagens de diferentes obras.
Nos discursos que fez na Baviera, diz o comunicado do Vaticano, Bento XVI quis que aparecesse, "com toda a clareza, a advertência, dirigida à cultura ocidental, de que se evite "o desprezo de Deus e o cinismo que considera a irrisão do sagrado um direito da liberdade"". Na missa de domingo, perante 250 mil pessoas em Munique, Bento XVI disse que a África e a Ásia receiam a "racionalidade que exclui totalmente Deus da visão do homem". Estas referências foram mesmo interpretadas nas agências internacionais como uma alusão à polémica sobre as caricaturas do profeta Maomé.
O comunicado do Vaticano assegura ainda, na linha da mesma homilia de domingo, que "a justa consideração da dimensão religiosa é uma premissa essencial para um diálogo frutuoso com as grandes culturas e religiões do mundo". E cita uma passagem final do discurso em Ratisbona: "As culturas profundamente religiosas do mundo vêem na exclusão do divino da universalidade da razão um ataque às suas convicções mais arreigadas. Uma razão que é surda e relega a religião para o âmbito de uma cultura de segundo grau é incapaz de se inserir no diálogo das culturas."
Para o Vaticano, "fica clara a vontade" do Papa em "cultivar uma atitude de respeito e diálogo para com as outras religiões e culturas, incluindo o islão". Mas nem todos encaram as coisas de modo tão simples. O sociólogo das religiões Renzo Guolo dizia ontem ao La Repubblica que, ao falar do profeta Maomé, o Papa quebrou um tabu. "As religiões podem falar entre elas de ética, de paz, de família ou de secularização", mas "nunca dos dogmas ou dos textos sagrados de outrem, sob pena de provocar um imediato reflexo identitário".
Opinião diferente tem o intelectual de origem egípcia Magdi Allam, vice-director do Corriere della Sera. O Papa limitou-se a referir verdades históricas e a reacção de alguns muçulmanos é "desoladora e preocupante", revelando que o islão foi transformado pelos extremistas em ideologia.
A chanceler alemã, Angela Merkel, defendeu o seu compatriota Ratzinger, dizendo que o objecto do discurso não foi entendido. "Era um convite ao diálogo entre religiões e à renúncia de todas as formas de violência em nome da religião."
Também o ex-arcebispo de Cantuária (líder espiritual dos anglicanos), George Carey, afirmou que "os muçulmanos, tal como os cristãos, devem aprender a dialogar sem gritar histericamente". Vivemos tempos perigosos, disse o arcebispo, "e devemos não só separar a religião da violência, mas também não dar qualquer legitimidade religiosa à violência".

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