Uma vez era a Arrábida (II)

1.A Arrábida, de vez em quando, salta para os jornais ou telejornais, e raras vezes por boas razões. Numa semana em que andou nas bocas do mundo, andei eu para aqui feito memorialista, repetindo-me pouco ou muito, como é sina de quem puxa por lembranças. Já se sabe que o sexo dos anjos é a minha especialidade (não desfazendo), mas às vezes parece quase provocação: passar ao lado e dar uma volta. Deixem-me lá. No comer e no coçar tudo está no começar e lá hei-de ir ter se me deixarem seguir pelos meus atalhos. Já uma vez o disse: a Arrábida é dos raros sítios em que nunca me perco. Retomo, pois, o fio à meada.

2. Se bem se lembram, na semana passada (PÚBLICO, 27 de Agosto de 2006) andei por praias e rochas. A costa da Arrábida tem servido para desvarios e delíquios, comparada a Rapallo ou a Bordighera ou às paragens da Baía ou, Pozzuoli. Jaime Cortesão, que, em 1924, fez tais comparações, chamou-lhe "o mais mimoso trecho porventura de toda a costa portuguesa". "Perguntamos a nós mesmos se sonhamos." Eu tirava o porventura que não faz falta nenhuma, nunca me lembraria de lhe chamar mimosa e há mais de 70 anos que a sonho. Pelo menos acordado, ou a dormir, nunca sonhar sonhei que não fosse com Arrábida ou em Arrabidar. Ainda hoje... Mas cala-te boca que ninguém tem nada que ver com os teus sonhos privados.Mas, se não há Arrábida sem mar, nem mar sem Arrábida, a Arrábida é uma serra, como toda a gente sabe. "Serra da Estrela tão vizinha / Que nunca de ti, serra me afastarei!" Era deserta quando, em 1542, o primeiro duque de Aveiro, D. João de Lencastre, nela acolheu os primeiros eremitas. Era deserta quando, em 1605, o terceiro duque, D. Álvaro, sobrinho do primeiro, mandou construir a pequena cela em que viveu frei Agostinho da Cruz, o primeiro dos muitos poetas da Arrábida e certamente o melhor. Quando ele morreu, em Setúbal, a 14 de Março de 1619, aos 79 anos, era menos deserta, pois já fora edificado o chamado Convento Novo, onde D. Álvaro quis ser sepultado. A duquesa de Torres Novas rodeou o convento com as celas e ermidas do chamado Convento Velho, e, do outro lado dele, ergueu-se, no segundo quartel do século XVII, a Ermida do Bom Jesus, com a cúpula azulejada e os jardins à imagem do mundo, decalcados de Aranjuez.
Mas, voltando a mim e ao tempo meu de que falei na crónica anterior, praticamente deserta continuava a ser a serra até aos meus quinze anos de 1950. Percorriam-na apenas as cabras do Zé Agostinho (pai do César, de quem falei na semana passada) mantendo abertos os atalhos e caminhos que os frades usavam antes do Mata-Frades os expulsar de lá. E percorriam-na os homens da família (no meu tempo, já as mulheres) bons conhecedores dessas veredas. Mas, a mim, quem mais me ensinou segredos da serra foi outro poeta, esse Sebastião da Gama da Serra-Mãe, que morreu no dia em que eu fiz 17 anos, tinha ele 27.
Filho do senhor Gama, concessionário da Estalagem da Fortaleza, vivia na Arrábida e viveu para a Arrábida. De todos os caminhos de que lhe devo consanguinidade, o que mais me marcou foi esse, a meia encosta, no dito monte Abraão e no dito monte do Convento, que saía do Fonte do Solitário (se quiserem que lhes conte a história do Solitário tem que ficar para outra vez) e vinha ter ao Convento. Era o melhor caminho para se visitar a lapa do Médico, a das galerias subterrâneas que se sucedem a pique e onde o próprio Sebastião da Gama descobriu uma última galeria de que me confiou o segredo. Todos os visitantes que lá levei hesitaram em se meter chão abaixo por um buraco sombrio, enxameado de mosquitos. Como disse o outro, mais tremeriam se soubessem o que os esperava nos outros buracos todos.
Mas o maior mistério desse caminho era a sua traça. Embora se subissem ou descessem uns 100 metros (experimentem, por exemplo, fazer o caminho a pique que leva direito da estrada à lapa do Médico) não se dava conta de subir nem se dava conta de descer. Vezes sem conta, quando, dobrada a encosta frontal de monte Abraão, se começava a ver o Convento, eu perguntei a virgens quanto tempo pensavam elas ainda caminhar. As respostas variavam entre meia hora ou uma hora, mas era preciso ser-se muito vagaroso para não chegar ao Convento em dez minutos. Porquê e como? Não mo perguntem, que são mistérios a que não sei responder.
Mistérios também verificáveis nesse atalho (bastante mais longo) que leva do Convento à Capela de El Carmen (capela, casa de romeiros e estação de caça) mandada construir pela 6.ª duquesa, nos princípios do século XVIII, atravessando a mata Coberta, a que não tem rival, ao que se diz último vestígio na Europa das matas pré-glaciares, celebrizada por Chodat em 1909.
Ou, para não me embrenhar mais nesta serra que Agustina chama de risco (de alto risco, direi eu), o caminho que da estrada da serra vai até à Capelinha de São João do Deserto e, depois sobe, ladeando algares de dezenas de metros de profundidade, até ao Alto do Formosinho, o ponto mais alto da serra e que tanto extasiou, em tempos, Oliveira Martins.
3. Em 1924, Jaime Cortesão, que hoje se lê com uma espécie de nostalgia irónica, profetizou à serra e ao mar destino de Riviera portuguesa, da "nossa verdadeira Costa Azul". Em 1950, continuaram a profetizá-lo e, se nada se salvara, nada estava estragado, com essa incomparável doçura de viver de que falei há oito dias.
Nos anos 50, deixaram construir, no morro de Alportuche e na encosta do Guincho sobranceira à praia, uma série de casas de veraneio. Mas, à medida que a densidade da população (estival) abundava, sumiam-se das praias as areias, levadas, ao que ouvi dizer (que eu disso não sei nada) pelas obras de assoreamento do porto de Setúbal. Quem, tendo lido a minha crónica de Agosto, atraído pela minha descrição das quatro praias de Alportuche, resolver ir lá ver, pensará que eu sou doido ou mitómano. Areia só por favor e na maré baixa, por forma a tomar a palavra "praia" muito favor meu. O que há ali, aos milhares, são pedrinhas, pedras e pedregulhos, rochas e calhaus e tudo aquilo parece efectivamente pré-histórico, mas após cataclismos cósmicos ou tsunamis à portuguesa.
Desapareceu igualmente, e em anos muito mais próximos, a praia dita dos Pescadores ou dos Pilotos, quase vizinha ao Forte e sob a casa que os Pilotos construíram na serra. Davam-se nela, ao longo da costa e até à lapa de Santa Margarida, passeios inolvidáveis e havia ali uma quietação muito especial, que Jorge Silva Melo ainda pôde captar no seu belo Agosto (1988). Muitas reentrâncias, cavidades de coisinhas boas, uma sombra húmida entre ouriços, caranguejos e alforrecas. 1988 nem há vinte anos foi e dessa praia nada ficou. Do Portinho, a minha imagem de infância é uma espécie de Algés - vá lá de Carcavelos -, com as barracas e os toldos frente às casas que a Casa Palmella alugava e, nos anos 40 e 50, atraíram uma segunda vaga de arrabidenses, numa relativa moda em torno de dois iates ancorados ali mesmo.
Posso exagerar, mas não tanto como se pensa. Depois, para lá do casarão que servia de logradouro ao salva-vidas da região, eram quilómetros de praia deserta, até à duna imensa do Quereiro (em frente da Pedra da Anicha) e, mais longe e mais oculta, a praia dos Coelhos, de que eu sempre gostei mais.
Hoje, o casarão do salva-vidas, que eu pensei que me havia de sobreviver por muitos anos, já não existe, levado por ventos e marés, e tenho dificuldade em convencer os meus netos que ali houve uma casa, quanto mais um casarão. Ao menos, essa derrocada ensinou-me umas coisas de que eu, com o meu ódio a obras, duvidei nesciamente: as casas, como os cavalos, também se abatem e só duram se as fizerem durar. Mas até chegar ao sítio onde ela era, qualquer veleidade de praia ou areia só no imaginário ou na memória. É só depois - onde dantes eram as praias desertas - que começa o que resta do Portinho, com menos areia cada ano e agora polvilhado de barracas e toldos, embora, graças a Deus e graças à coragem de Carlos Pimenta, não mais daquelas dezenas de habitações de aldeia de macacos, que, entre os anos 60 e 80, por lá existiram.
Nos anos 50, como disse atrás, a calma da Arrábida estremeceu. Nos anos 60, ainda muito era possível, mas as ameaças já eram imensas. Como um dia recordei, é dessa década o plano do arquitecto Rafael Botelho, o único que podia ter salvo a Arrábida.
Em vez dele, abriu-se, em 1973, a estrada que liga a Figueirinha ao Portinho, transformando a Arrábida na Caparica de Setúbal. Nunca se soube bem como foi possível construir essa via criminosa, que contrariou todos os planos aprovados. Como nunca se soube bem quem deixou a cimenteira comer a extremidade oriental da serra, o que agora valeu como pretexto para, assim como assim, a utilizaram na queima de resíduos tóxicos.
Como nunca se soube bem quem autorizou a pedreira na extremidade ocidental, perto das falésias do Risco, o ponto mais alto da costa portuguesa e que, ano a ano, vai descarnando e devorando essa parte da serra.
No ano passado, depois de um Inverno em que algumas rochas ameaçaram desabar sobre a famigerada estrada da Figueirinha, o acesso foi vedado. Na minha santa ingenuidade, pensei que se aproveitava a ocasião para cortar definitivamente a estrada e acabar com a praga que era. Qual quê! Apesar da austeridade, apesar daquela piedosa tese de quem não se preocupa com grandes investimentos porque quem não tem dinheiro não tem vícios, houve dinheiro para um vicioso e disforme túnel (horrendo e feio) que protege das pedras e permite o recomeço do acesso (este ano, ainda foi condicionado, mas só num bocadinho). Qualquer dia - longe vá o agouro - caem pedras e cai o túnel e lamenta-se a mofina.
Eu tinha ouvido contar histórias terríveis, mas, habituado à Arrábida de Setembro e do Inverno, às vezes pensava que mal por mal antes assim, que quem lava às vezes estraga, segundo um dia me contaram. A experiência de Julho deste ano tirou-me ilusões. Coberta de carros desde a Portela ao Portinho (quatro quilómetros), a estrada está transformada em gigantesco parque de estacionamento, já que o único que existe é dos meus verdes anos. Com idas e vindas numa estrada mais apertada que a Calçada da Glória, os engarrafamentos são de horas e rivalizam com os melhores dias da Caparica. A praia, ou o que dela sobra, é a mais vasta extensão de lixeira existente no planeta. E quanto ao resto... E quanto ao resto, fica para a semana, que eu trago tanto para contar. escritor

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