Os anos 60 e a contestação do regime

A experiência dos anos 60, vividos internacionalmente num raio temporal de cerca de duas décadas, definiu-se, naquilo que teve de mais original, por um conjunto de marcas e de práticas absolutamente inovadoras. Desde logo pela afirmação histórica da juventude como grupo social munido de padrões de vida autónomos, mas também pelo fulgor da nova cultura popular (ou "de massas"), por uma grande abertura no campo dos costumes, da moral e da sexualidade, por uma presença alargada das mulheres na praça pública, por novos padrões estéticos que integravam o quotidiano, pela afirmação anti-disciplinar de movimentos sociais de novo tipo e dos direitos das minorias. Nos países industrializados e nas suas imediatas periferias, as organizações formais da esquerda mantinham-se muito activas, é certo, mas haviam mergulhado num impasse histórico, do qual o radicalismo constituiu uma das vertentes e a ortodoxia a outra. A social-democracia hesitava entre as preocupações sociais que lhe tinham determinado a matriz política e a defesa do liberalismo económico. A direita, essa demarcava-se obsessivamente de qualquer mudança no discurso e no quadro tradicional de valores. E Portugal, apesar de viver uma ditadura isolacionista, de manter uma estrutura social marcada pela pobreza, pela emigração e pelo reduzido impacto da classe média, de conhecer uma guerra colonial dolorosa e que coagia as perspectivas de vida da generalidade dos jovens, não escapou a esse processo.O debate a respeito da especificidade dos nossos anos 60, que corre agora em alguns blogues e nos jornais, não é nem pode ser consensual. Na verdade, falamos de uma realidade em relação à qual a curta distância temporal e a recepção contemporânea de determinadas ondas de choque, ainda bastante sensíveis, levanta alguns problemas e suscita a afirmação de posições que, muitas das vezes, têm mais de repetição de estereótipos em relação à identificação dos factores de mudança na realidade portuguesa da época do que de um esforço para a apreensão da influência, a meu ver bastante rápida e profunda, que a experiência dos sixties foi capaz de introduzir nas transformações que tiveram lugar em Portugal durante os anos de decadência do Estado Novo. Exemplar deste género de atitude parece-me ser o texto da autoria de Vítor Dias (VD) que o PÚBLICO divulgou na passada sexta-feira.
Ao contrário do que o seu autor afirma, não me parece que aquilo que sobre o assunto tem sido escrito desvalorize "a luta popular e democrática". Vinda de muito antes, esta continuou, sem dúvida, de certa forma à margem de modas e epifenómenos, no contexto da luta democrática contra a repressão salazarista e das reivindicações dos trabalhadores contra as profundas injustiças sociais, e apesar das purgas internas e das reviravoltas tácticas das oposições, a ser essencialmente organizada pelos comunistas, tendo sido pautada por iniciativas que procuraram combater as injustiças e as desigualdades instaladas na sociedade portuguesa. Ela foi, sem sombra de dúvida, fundamental para a redução de muitas arbitrariedades e para a afirmação de uma resistência que viveu da forma exaltante o 25 de Abril. E que depois, em liberdade, acolheu e foi aprofundando o sistema democrático. Nada disto me parece questionável ou tem sido questionado no contexto do referido debate.
O eixo da minha divergência prende-se pois, em termos interpretativos, sobretudo com aquilo que se passava no universo em expansão habitado por uma juventude, sobretudo a urbana e estudantil, com abordagens do mundo e expectativas radicalmente novos, e por uma classe média sedenta de autonomia, ambas crescentemente adversas às práticas do regime anterior e ao seu código de valores. Ao dizer, com o objectivo de relativizar a importância deste sector nos processos de mudança, que na época "os estudantes universitários andavam por 30.000 ou pouco mais", o que é verdadeiro, VD deixa de lado o facto de falarmos de um arco temporal de cerca de 15 anos, e que, durante todos esse período, a multiplicação de estudantes e ex-estudantes, portadores de uma experiência de oposição cultural e vivencial, ter-se-á ampliado, no todo, a várias centenas de milhares de pessoas, às quais podem ainda associar-se, frequentes vezes, muitos dos seus familiares, amigos, companheiros de trabalho ou conterrâneos. Por outro lado, o lugar deste amplo sector, numa altura em que a dinâmica social fazia já recuar o peso dos operários e dos camponeses ­ os quais integravam prioritariamente a "luta popular" da qual fala VD - era de um cada vez maior destaque, tanto na definição de comportamentos de recusa como na organização dos processos de mudança. Estou em crer que o próprio regime o acabava por reconhecer, ao mostrar-se incapaz de reprimir a contestação ou as iniciativas de resistência provindas desses sectores com a mesma inflexível brutalidade com a qual, anteriormente, reprimira a luta operária, as revoltas rurais ou a dissidência intelectual.
Um livro, a editar em breve, que integra testemunhos de activistas estudantis da época, do qual sou organizador em conjunto com Maria Manuela Cruzeiro - Anos Inquietos. Vozes do movimento estudantil em Coimbra (1961-1974) - documenta a emergência dessa noção, geracional se se quiser, de uma incontornável desafectação em relação ao Estado Novo. A qual nasceu, para quase todos os seus actores, como experiência natural de resistência a um poder que viam como caduco, injusto e fora do seu tempo. A militância partidária, nos casos, muitos, em que aconteceu, ocorreu sempre razoavelmente depois dessa tomada de consciência e dessa predisposição, quase matricial, para se afirmarem - vivencial, cultural e politicamente - como sendo "do contra". Incluindo, sublinho, aquela que aconteceu dentro do próprio movimento estudantil, no qual muitas outras solidariedades se levantaram adiante daquelas determinadas pela disciplina partidária.
A atracção da "festa", a ruptura pelo lado da vivência do quotidiano, da sensibilidade, da estética, da experiência individual, que, aqui como noutras partes, incluindo na Paris ou na Praga de 1968, os comunistas desvalorizavam - com epítetos sobre uma "esquerda em festa" que, paradoxalmente, em parte se inspirava no "festivo" exemplo cubano - não significava um néscio alheamento da realidade. Tal como Vítor Dias insinua, e como, há muitos anos atrás, Álvaro Cunhal havia deixado claro num texto sobre o "radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista" com o qual pretendia riscar de alto a baixo Maio e a Crise da Civilização Burguesa, o livro desalinhado de António José Saraiva publicado em 1970. Representou, isso sim, uma reacção natural, e optimista, perante um mundo que ruía sem que se percebesse muito bem que outro mundo dali poderia emergir, para além da "convicção" de que este seria com toda a "certeza" melhor e de muitas cores. Atitude que a "ideologia da classe operária" se mostrava incapaz de explicar e que os seus celebrantes jamais aceitaram. E que muitos dos actuais movimentos sociais herdaram e aproveitam ainda, enquanto factor de mobilização e convergência. Historiador e professor universitário

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