Günter Grass e o dever da memória

Como pode alguém que não soube conviver com o seu passado impor a todos o dever de memória?

Günter Grass confessou publicamente que não tinha apenas lutado no exército alemão, mas que havia integrado uma unidade das Waffen SS. E não uma unidade qualquer, a Frundsberg, considerada um dos melhores corpos de elite daquela força. Nascidas das SS, as Waffen SS formaram corpos de combate distintos do exército regular, a Wehrmacht, combatiam habitualmente de forma mais determinada e cruel, mesmo não se devendo associar todos os seus membros às SS, pois não tinham as mesmas funções políticas. Isso não impediu que o conjunto das Waffen SS fosse considerado como fazendo parte de uma organização criminosa profundamente implicada nos horrores do nazismo.É certo que Grass não chegou à Frundsberg por a ter escolhido - tinha-se voluntariado para combater nos submarinos -, mas isso não impedia que tivesse desse tipo de unidades uma imagem positiva, como confessou ao Frankfurter Allgemeine Zeitung. Foi isto, associado ao facto de o escritor alemão ter esperado mais de 60 anos para revelar o seu segredo, quando ocupou o essencial da sua vida a escrever sobre a necessidade dos alemães de enfrentarem o seu passado, que chocou muitos dos que o admiravam e gerou um coro de críticas.
Contudo, Grass não deixa de ser um grande escritor por ter passado pelas Waffen SS - da mesma forma que algumas obras de José Saramago são grandes romances apesar do seu papel de censor comunista quando esteve no PREC à frente do Diário de Notícias. Rushdie tem razão quando diz que não devemos deixar de ler Céline "apesar de ele ter sido anti-semita" ou Ezra Pound, que "era um simpatizante nazi" assumido. As ideias políticas de um criador, por mais tenebrosas que sejam, não impedem que o apreciemos enquanto criador e, mais do que isso, nos interroguemos sobre o paradoxo de o génio criativo por vezes conviver com a absoluta cegueira política e a mais cruel intolerância.
O importante, no caso de Grass, não é pois saber se deixou de valer como escritor, mas se merece continuar a ser considerado uma referência moral. O importante é perceber como alguém que passou a vida exigindo aos alemães que assumissem a sua memória foi incapaz de revelar a tempo e horas o pedaço mais sombrio da sua própria vida. O importante é levá-lo a responder à pergunta que diz tê-lo atormentado durante toda a vida: "Para mim tudo rodou sempre em torno da mesma questão, a de saber se poderia ter tido consciência do que se passava à minha volta naquele tempo." Isto é, se podia ter evitado apoiar na adolescência o regime nazi, e ter-se voluntariado para o defender, ou se sofreu antes do mesmo tipo de "alucinação colectiva" que nesses anos embriagou quase toda a nação alemã.
Investigações históricas recentes sustentam que os alemães não foram apenas um rebanho conduzido por criminosos, antes que a sua adesão às causas do Terceiro Reich fez da maioria dos cidadãos criminosos com consciência do que estavam a fazer. A questão é mais dilacerante no caso de Grass já que, mesmo sendo bastante novo, tinha idade suficiente para notar algumas das "anormalidades" que ocorriam à sua volta, em especial o desaparecimento dos judeus que viviam na sua cidade natal, a então alemã Danzig, hoje a polaca Gdansk.
O "moralizador" da Alemanha, o crítico permanente da falta de memória, não foi capaz de encarar a sua. Por isso, se a obra do escritor não desaparece nem pode ser menorizada, a aura moral como crítico do sistema fica irremediavelmente abalada.

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