Fogo na serra de Santa Justa põe em risco espécies vegetais protegidas

milhares de hectares de área verde arderam

O lixo, o mato por limpar e a canícula ajudaram os fogos a galgar as serras do distrito e deixaram marcas em Valongo, Gondomar e Paredes

Ainda é cedo para fazer balanços dos fogos que, durante oito dias consecutivos, fustigaram o distrito do Porto. Ainda não foi calculada com precisão a extensão da área ardida nos concelhos mais afectados - Valongo, Gondomar e Paredes -, mas a chegada da chuva já permite estimar os estragos. Alguns milhares de hectares foram consumidos pelas chamas, tendo sido devastada grande parte da serra de Santa Justa. Investigadores contactados pelo PÚBLICO temem que duas espécies vegetais protegidas (ver caixa), populações de fetos únicas desta zona abrangida pela rede Natura 2000, não tenham saído ilesas. A única boa notícia é que nenhuma casa foi destruída. Apesar de ter sido poupada em 2003 - quando uma resolução de Conselho de Ministros conferiu o estatuto de protecção às serras de Santa Justa e Pias -, esta área verde partilhada por alguns concelhos já tinha sido palco de um grande incêndio há dois anos. Na altura, apontou-se o dedo aos mesmos problemas que, segundo as fontes contactadas pelo PÚBLICO, estão na origem dos incêndios registados desde o dia 4 de Agosto: o mato rasteiro fica por limpar sobretudo em terrenos privados, as lixeiras clandestinas somam-se ao clube dos combustíveis à espera de uma fonte de ignição e o eucalipto continua a ser a espécie mais cultivada. O calor só veio ajudar à festa.

Em Paredes, "os montes estão a monte"As manchas verdes de Paredes - localizadas mais precisamente nas freguesias de Sobreira, Recarei e Aguiar de Sousa, a sul do concelho - são quase exclusivamente propriedade privada, garante a vereadora do Ambiente de Paredes, Raquel Moreira da Silva. À excepção das áreas exploradas por empresas de celulose, segundo a autarca, "os montes estão a monte". Quer isto dizer que há muitos terrenos por limpar. O instrumento legal à disposição do município é a aplicação de uma multa aos particulares que, após a notificação, não procedam à recolha de lixo e massa vegetal nas suas propriedades.
"O grande problema é que a maior parte dos proprietários não é rica. São muitas vezes idosos ou dezenas de herdeiros difíceis de contactar", explica Raquel Moreira da Silva, que assegura que a Câmara de Paredes já emitiu "várias" contra-ordenações. A responsável garante que o número de sanções "vai aumentar e muito". Contudo, isto não parece ser uma panaceia. Após a aplicação da multa, a autarquia pode efectuar a remoção do mato rasteiro e imputar os custos da operação ao proprietário. E se este não puder pagar? E se o terreno ainda fizer parte de intermináveis inventários de múltiplos herdeiros? Perguntas que costumam ter respostas não muito céleres e nos tribunais.
Os incêndios "terríveis" que assolaram Aguiar de Sousa de 4 a 6 de Agosto, segundo Raquel Moreira da Silva, não fugiram à regra. Segundo a autarca, o eucaliptal estava bem cuidado, mas o mesmo não se verificava nos terrenos de minifundiários no sopé da serra. O fogo terá galgado as encostas e consumido cerca de 900 hectares de área florestal. No segundo dia de chamas, a governadora civil do Porto, Isabel Oneto, teve mesmo de activar o Plano de Emergência Municipal. Quatro colunas militares do Exército e um aerotanque tiveram de acudir aos cerca de 500 bombeiros que, apoiados por 120 veículos, combatiam várias frentes do incêndio que obrigou ao corte de trânsito automóvel na A4.

"Ardeu quase tudo na serra de Santa Justa"Dos três concelhos mais castigados, Valongo é o que mais preocupa os investigadores da fauna e da flora. É que na serra de Santa Justa moram quatro espécies raras - a salamandra-lusitânica e três tipos de fetos -, todas elas apreciadoras de ambientes com clima temperado e húmido. "Receamos que este incêndio possa ter tido um impacte preocupante em duas das espécies de fetos, cujas populações se localizam junto à Aldeia de Couce - que, como se sabe, foi cercada pelo fogo", afirmou ao PÚBLICO João Honrado, docente do Departamento de Botânica da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Rubim Almeida da Silva, investigador na mesma unidade, acrescenta que, apesar de ser impossível "quantificar com precisão", pode-se estimar que 30 por cento da área protegida tenha sido devorada pelas chamas. "Ardeu quase tudo na serra de Santa Justa, desde o cume até ao rio Ferreira, no sopé", referiu o investigador.
O gabinete de comunicação da Câmara de Valongo confirmou ao PÚBLICO que tanto os habitats das salamandras como dos fetos foram afectados, mas os técnicos municipais que foram ontem ao terreno não podem dizer "até que ponto os danos causados pelo fogo são ou não irremediáveis". Os serviços camarários vão agora pedir uma avaliação científica aos especialistas da Universidade do Porto. A edilidade dispõe de uma equipa com cinco sapadores florestais que patrulham a serra e realizam acções de vigilância "sistemáticas", segundo o assessor, sendo gasta uma verba anual de 25 mil euros na prevenção. Ainda não foi contabilizada a área total ardida neste município.
O vereador responsável pela Protecção Civil de Gondomar, Telmo Viana, lamenta os mil hectares de zonas verdes ardidas no município. "Entre Janeiro e Agosto deste ano, registámos apenas 50 hectares queimados. E, não fossem os incêndios oriundos de Valongo e Paredes, continuaríamos a apresentar esses mesmos números residuais", referiu o responsável, sublinhando o facto de as labaredas terem galgado fronteiras municipais.

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