Doutourou-se com 25 anos, foi catedátrico aos 27, a sua vida era ser professor de Direito

Em 1962, Marcello Caetano, então reitor da Universidade de Lisboa, demite-se do cargo na sequância da proibição do Dia do Estudante. O acto foi mais um indício do seu distanciamento em relação às políticas de Salazar

Na véspera da tomada de posse como presidente do Conselho, Marcelo Caetano não deixava de pensar no seu trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde leccionara havia décadas. Preocupava-o a possibilidade de faltar aos professores e assistentes o empenhamento que sempre demonstrara junto dos seus alunos. Nesse dia, 26 de Setembro, na sua casa da Rua Duarte Lobo, em Lisboa, foi isto mesmo que transmitiu ao seu antigo aluno e sucessor na coordenação do grupo de Ciências Políticas, André Gonçalves Pereira. As instruções eram estas, recorda o advogado: "Disse-me para eu impulsionar, como ele fizera comigo e com outros, os doutoramentos e os concursos, para que o grupo aumentasse."
Mesmo à distância, Caetano manteve sempre um apego ao ensino e à vida académica (o programa Conversas em Família foi também uma espécie de prolongamento das aulas). Ao longo dos seis anos de chefia do Governo nunca descurou o contacto com a faculdade. Gonçalves Pereira, professor catedrático daquela instituição universitária, encontrava-se com ele, uma vez por mês, para o manter a par do que ia acontecendo naquele "meio familiar". "Aquilo que ele realmente gostava e onde se realizava plenamente era no ensino universitário", frisa, notando que o facto de Caetano ter sido "sobretudo um intelectual" acabou por impor-lhe "limitações enquanto político".
Gonçalves Pereira, que em 1969 recusou o convite de Marcelo para tutelar a pasta dos Negócios Estrangeiros ("não havia futuro para aquele regime", justifica), sublinha mesmo que "a mais importante obra" do antigo presidente do Conselho foi a sua "acção universitária". Os seus manuais de Direito Constitucional e Direito Administrativo "fizeram doutrina durante quase meio século", foi ele quem dinamizou a chamada "escola de Direito Público" da faculdade e a sua História do Direito Português (o primeiro e único volume foi escrito no exílio) continua sem paralelo.

"Dissidência pública" em 1962Marcelo Caetano tinha 16 anos quando entrou para a Faculdade de Direito de Lisboa. Cinco anos depois estava formado e pouco tempo após completar a licenciatura conhece Salazar, que o convida para auditor jurídico do Ministério das Finanças.
Caetano era um sobredotado. Aos 25 anos concluiu o doutoramento. E em 1933, um ano depois de ter participado na redacção da Constituição, concorreu ao lugar de professor catedrático na Faculdade de Direito. Tinha 27 anos.
Em 1959 é nomeado reitor da Universidade de Lisboa, cargo que abandona em 1962 na sequência da proibição do Dia do Estudante. O acto é mais um indício somado a outros que traduzem o distanciamento de Caetano em relação às políticas de Salazar. "Foi claramente uma posição de afrontamento ao Governo", refere Mota Amaral, também antigo aluno de Marcelo e ex-deputado da "ala liberal".
Medeiros Ferreira, que conheceu Caetano quando este promovia encontros com todos os dirigentes associativos, diz que a demissão foi interpretada como uma "dissidência pública". Rejeitando qualquer tipo de responsabilidade na acção repressiva contra os estudantes, Caetano "agiu mais como político do que como ideólogo", afirma o historiador. Gonçalves Pereira acrescenta: "Com 44 anos de intervalo não podemos hoje imaginar o impacte político desta decisão numa altura em que o salazarismo dominava o país."
O regresso de Caetano à faculdade poderia ter acontecido após o "golpe das Caldas" (16 de Março de 1974), como desejou Gonçalves Pereira. Mas o desígnio do labor governativo falava mais alto.
Cerca de duas semanas antes do 25 de Abril o advogado endereçou-lhe uma carta, escrevendo que o fim estava próximo e que seria bem recebido na faculdade. A resposta não tardou. "A nossa diferença não é de opinião, mas de posição. Eu também gostaria muito de voltar à faculdade, mas não me é possível dada a posição e os compromissos que assumi", cita de cor Gonçalves Pereira. Para Caetano, o cumprimento da ordem política era inquebrantável. M.J.O.

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