DAS ORIGENS DO SNOBISMO

1. Ostras? Quem me falou em ostras este Verão? Quem as evocou? Antigamente, no tempo em que havia tempo para o tempo das cerejas, no tempo em que havia tempo para o tempo dos ouriços, no tempo em que não se comia de tudo a toda a hora, ostras eram proibidas em meses sem "r", rolados ou não. Agora alguém me disse que as comeu, e deliciosas, num chalet à beira mar, onde a cozinha era "d"une magnificence à mourir de faim" para começar por citar Mme. De Sévigné do tempo em que a avó de Proust a relia em Balbec, ainda mal florescia a sombra das meninas. As Mémoires de Mme. de Beausergent, julgo eu.Isso me fez lembrar a repugnância que o jovem Marcel tinha então pela carne viva desses moluscos, repugnância ainda maior que a provocada pela viscosidade das medusas que abundavam na praia de Balbec. Madame de Villeparisis, que em tempos fora amiga da avó e só nesse Verão assume no livro o peso que não deixará de aumentar até ao fim dele, estranhava nunca as ver à mesa de Proust, que, de resto, ela ignorava que se chamava assim, como ressalta, depois, no episódio da apresentação à Princesa do Luxemburgo.
"Mais il me semble que vous ne mangez jamais d"huîtres; elles sont exquises sur cette côte!" E é mais ou menos por essas páginas, se a memória me não trai, que nos são louvados os que fazem parte do "pequeno número". "Só procuro o pequeno número e evito os outros."
Poucas páginas depois, Madame de Villeparisis, que, dada a sua velha amizade com a família, não podia (ou não devia) ser arcanjo na teologia dos Guermantes, anuncia a visita de um sobrinho. "Era uma tarde em que fazia muito calor. Eu estava na casa de jantar do hotel, onde tinham corrido as persianas para a deixar meio às escuras, bem protegida do sol. Nos interstícios, tremelicava o azul do mar. Foi então que, na passagem central, que ia da praia à estrada, vi, alto, magro, pescoço muito à mostra, cabeça muito direita e altiva, passar junto a mim um rapaz de olhos penetrantes, com uma pele tão loura e uns cabelos tão dourados como se tivessem absorvido todos os raios de sol." Assim entra na Recherche o jovem marquês de Saint-Loup-en-Bray, sobrinho de Mme. De Villeparisis.
As descobertas sucedem-se vertiginosamente. Num passeio de ocasião, Mme. de Villeparisis apresenta outro sobrinho não menos ilustre: aquele que, tendo direito ao título de Prince des Laumes, por achar que se abusava de ducados italianos e de grandezas espanholas, escolheu para si, título de "puré intimité", o de Barão de Charlus, o mais obscuro mas o mais antigo dos muitos a que tinha direito. "Hoje em dia", costumava ele dizer, "toda a gente é príncipe. Tive que escolher alguma coisa que me distinguisse. Quando quiser viajar incógnito, usarei o meu título de príncipe." Assim, essa Madame de Villeparisis, que, para o autor do livro, fora, até esse instante, a senhora que quando ele era pequeno lhe dava caixas de bombons com patos na tampa, passa a ser uma Guermantes, Guermantes como os que tinham um solar em Combray e pretendiam descender de Genoveva de Brabante. Mais - muito mais -, Marcel só o soube depois da morte de Madame, ao tempo das prisioneiras que ela um dia lhe tinha inadvertidamente anunciado. É Charlus quem lho diz, quando lhe conta que a tia, que morrera na maior solidão, era sobrinha da famosa duquesa de ***, a pessoa mais célebre da grande aristocracia durante a monarquia de Julho, mas que sempre se recusara a frequentar o Rei Cidadão e a família. Toda a vida, Marcel quisera saber coisas da Duquesa e nunca as perguntara à sobrinha, com quem tanto conversara sobre Chateaubriand, Balzac, Stendhal e Vítor Hugo, que, de resto, ela não apreciava lá muito, não lhes perdoando que tivessem querido pintar uma sociedade que nem sequer os recebia. Isso de artistas nunca é gente de confiança.

2. Chegou a altura da minha experiência proustiana.Essa Madame de Villeparisis, que atravessa a Recherche, desde as bandas de Swann até Veneza, onde comia salmonetes nos restaurantes do Grande Canal, essa Madame de Villeparisis, cujos passeios de calèche Marcel recorda no fim, como coisa de valer a pena viver a vida, foi buscada por Proust à histórica personagem da Condessa de Boigne (19-II-1781 - 6-V-1866). Como conheceu Proust a Condessa? Morta cinco anos antes de ele ter nascido, nunca, obviamente, se encontraram. Mas Proust era do pequeno número para quem não há "pessoas conhecidas" que sejam desconhecidas. Quando, em 1907, lhe leu as Memórias, escreveu: "Quando era adolescente, muitas vezes me cruzei em bailes com a sobrinha dela, a velha duquesa de Maillé (...) E lembro-me perfeitamente dos meus pais me falarem dos jantares em casa do sobrinho de Madame de Boigne." Esse sobrinho para quem ela escreveu as memórias e que se chamava Rainulphe d"Osmond.
É que Madame de Boigne, como Madame de Villeparisis, tinha nascido com um bem melhor nome do que esse que passou a ser dela após infeliz casamento aos 17 anos com um general de 47. Era a filha mais velha dos marqueses de Osmond e os marqueses de Osmond eram nobreza francesa (normanda) antes de Hastings e de Guilherme. As más-línguas (ou as boas) costumavam dizer que para os Osmond só havia duas famílias: a Sagrada e a deles.
"Literalmente educada ao colo da família real", em Versalhes, como ela própria o diz, viveu nove anos num mundo de que guardou suficiente memória para o descrever, como por exemplo no dia em que os reis lhe deram uma boneca que chegou de berço e com todos os acessórios, abençoada pelos doadores.
"O Rei segurou-me a mão.
"Para quem é tudo isto, Adèle?"
"Acho, Senhor, que é para mim."
"Toda a gente começou a brincar com a minha nova propriedade. Quiseram que eu me metesse na cama da boneca e a Rainha e Madame Elisabeth, de joelhos, dos dois lados do berço, divertiram-se a fazê-lo, gabando-se do jeito que tinham para mexer em colchões. Foi isto em 1788. Quem podia profetizar, nesse dias, que, poucos anos depois, ambas teriam que fazer a própria cama?"
Mas Adèle (era o nome próprio da Madame, como já perceberam) também se recordava de muitas anedotas. Como a de um certo Monsieur de Maugiron que um dia escreveu a carta mais definitiva que alguém escreveu a alguém. "Escrevo-lhe porque não sei o que é que hei-de fazer. Acabo porque não sei o que é que hei-de dizer."
Também aprendeu aí que as "vaidades feridas fazem mais inimigos do que se julga". Mas não chegaram a dez os anos do antigo regime da Condessa. Depois, foi a emigração e o desgraçado casamento que ela aceitou friamente, para poder refazer a fortuna do pai, a grande adoração da vida dela. Voltou a França em 1804, mas sempre viu Napoleão de longe e teve em horror (no fim arrependeu-se) o homenzinho. Com Luís XVIII voltou o esplendor, na monarquia de Julho evitou Luís Filipe, descendente desse Orléans regicida que mais que todos abominou. Morreu quando o segundo império chegava ao fim. São as únicas memórias que cobrem um período tão largo e tão rico de acontecimentos. 85 anos, de Luís XVI a Napoleão III, com quatro revoluções, duas repúblicas, dois impérios, e o tanto mais que tão bem se sabe.
E são memórias? Rigorosamente não o são. Sempre achou que chamar-lhe Memórias era solene demais. Quando as mostrou ao sobrinho, este disse-lhe que eram histórias da tia e como Récits d"une Tante deixou ela o manuscrito, só publicado (aliás abusivamente) em 1907.
Nunca Madame de Boigne presumiu de historiadora, recusando-se mesmo a escrever ou descrever aquilo que não presenciou. Nunca Madame de Boigne pretendeu escrever obra para a posteridade, atribuindo-se o título de escritora. Nunca se teve em tal conta. Conta histórias. Mas essas histórias são tão exemplares, tão bem contadas, num francês tão bonito, que os dois grandes volumes da última edição (Mémoires de la Comtesse de Boigne, Le Temps Retrouvé, Mercure de France, 1999) se lêem como empolgante romance.
Nunca a autora esconde ou atenua as suas intransigentes convicções legitimistas. Se se arrepende de alguma coisa é de ter sido mais antibonapartista do que patriota e de ter vibrado mais com as derrotas do imperador do que com as vitórias. Mas também não acredita em imparcialidade: essa virtude que todos protestam ter e que nunca conheceu em ninguém, de um lado ou de outro. Viveu todas as misérias da emigração, e conheceu bem a gente que voltou do exílio sem ter esquecido nada e sem ter aprendido nada.
Mas repete vinte e nove vezes ao longo da obra que a monarquia com que sonhava era uma monarquia liberal, segundo o modelo inglês. "Apesar da minha falta de gosto pelas cerimónias, quis assistir à sessão real em que a carta foi promulgada (4 de Junho de 1814). O meu liberalismo ficou destroçado pelas emendas que fizeram aos compromissos de Saint-Ouen." E se foi bourboniana, foi sempre muito mais liberal.
Se o socialismo fora a sua "bête noire" no fim da vida, no resto era bastante "esclarecida", embora tivesse pelos intelectuais a mesma desconfiança que Madame Villeparisis na Recherche de Proust. Já se disse que pela boca dela fala Sainte-Beuve.
Mas onde Madame de Boigne e Proust mais fundamente se encontram é na visão da História, como cena mundana em que cada personagem vive de valores imaginários, os únicos que podem dar Imagem ao Tempo e Tempo à Imagem.
Jean Claude Berchet, prefaciador da edição de 99, viu muito bem quando escolheu as memórias da Condessa de Boigne como lugar de nascimento do snobismo. Muito antes de Proust, neste livro, a aristocracia torna-se no fantasma da burguesia, que não deixara de ser desde que Napoleão se sagrou Imperador até que o franquismo foi absorvido pelos Bourbons de Espanha. Aprende-se tanto quando as tias nos contam histórias... Escritor

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