Calouste Gulbenkian Um filantropo autoritário

A Fundação Calouste Gulbenkian, que esta semana faz 50 anos, convidou mais de 800 pessoas para celebrar a criação de uma casa que, em tempos, fez o papel de ministérios da Cultura e Ciência. Portugal mudou radicalmente, e a fundação alguma coisa. Hoje, tem um orçamento de 113 milhões de euros e mexe ainda com milhares de portugueses. Antecipando o aniversário, publicamos hoje uma biografia do fundador, escrita pela socióloga (e uma das 65 mil bolseiras da fundação) Maria Filomena Mónica. A história de um homem que negociou petróleo, arte e geografia, e que aos 73 anos se mudou para Lisboa, onde acabou por morrer sozinho.

Calouste Sarkis Gulbenkian nasceu no ano de 1869 em Scutari, na margem asiática do Bósforo, o estreito que atravessa Istambul. Quer a família da mãe, quer a do pai, ambas de origem arménia, tinham enriquecido com o negócio de tapetes e ovelhas. Foi entre a plutocracia cosmopolita de Constantinopla que o jovem passou a juventude.Embora mantivessem o estigma das perseguições de que tinham sido vítimas, os arménios formavam um círculo de gente culta. Em casa, falavam arménio, mas, nas festas, usavam in­glês, francês, alemão, grego, turco e russo. Só se recusavam a falar árabe, tido como abaixo da sua dignidade. Uma minoria cristã rodeada por um mar de muçulmanos, sentiam uma desconfiança patológica em relação a tudo, a par de uma peculiar subserviência em relação aos superiores. Foi isto que, mais tarde, fez Gulbenkian dizer a um amigo: "Deves beijar sempre a mão que não ousas morder."
Após a escola elementar, Gulbenkian frequentou o liceu americano, antes de, aos 15 anos, seguir para Marse­lha, a fim de aperfeiçoar o francês, mas o seu sonho era prosseguir estudos em Inglaterra, como o fizera o seu primo Vahan Essayan, educado em Harrow. Terminado o liceu, conseguiu que o pai lhe pagasse uma estada no King"s College, por onde se licenciaria brilhantemente. No ano seguinte, com o di­ploma de engenheiro na mão, começou a trabalhar. O pai decidiu enviá-lo a Bacu, no sul do Império Russo, onde uma população frenética se empenhava a esburacar o solo para dele retirar um líquido viscoso. O que viu, o petróleo, marcá-lo-ia para a vida.
Tradicionalmente, este havia sido considerado um mero medicamento: só em meados do século XIX se percebeu que o produto, refinado, podia ser utilizado na iluminação. Não passaria muito tempo antes que alguns aventureiros, gente como Edwin L. Drake ou o coronel W. Mann, se lançassem na sua ex­ploração. Durante a década de 1860, um austero comerciante de Cleveland, John D. Rockefeller, decidiu que valia a pena investir no sector. Assim nasceu a Standard Oil.
Ainda sob o impacte da visita a Bacu, Calouste es­creveu um artigo relatando, ao lado das impressões de viagem, a maneira como via o futuro do petróleo. Após alguma hesitação, enviou o manuscrito para a prestigiada Revue des Deux Mondes, de Paris. Aos 20 anos, via o seu nome consagrado. Entusiasmado com o êxito, ampliou o escrito, publicando, em 1891, o livro La Transcaucasie et la Peninsule d"Apchéron: Souvenirs de Voyage. Pouco depois, um ministro do governo turco chamava-o ao seu gabinete, pedindo-lhe uma opinião sobre a concessão que o Império Otomano estava em vias de negociar com os alemães para a cons­trução da linha de caminho-de-ferro entre Berlim e Bagdad. Do dia para a noite, Gulbenkian passou de estudan­te brilhante a conselheiro político do sultão Abdul Hamid II. Com base nas suas informações, este expropriou imediatamente a região de Mossul-Kirkuk.
No regresso de Londres, Gulbenkian descobriu que o primo Vahan se preparava para casar com uma das herdei­ras mais ricas do mundo arménio, a sobrinha de Nubar Pasha, o primeiro-ministro do Egipto. Decidiu pedir imediatamente a mão de sua prima, Nevarte Essayan. Não era um empreendimento simples: não tanto pelo facto de ela só ter 13 anos, mas por a família Essayan considerar a perspectiva pouco atraente. Gulbenkian, porém, não era homem para desistir. O pai dera-lhe uma soma impor­tante - 30.000 libras - para se estabelecer, o que lhe permi­tiu instalar-se perto dos Essayan, em Londres. Fez então uma pequena fortu­na na Bolsa, após o que, numa conversa com o patriarca Essayan, o conseguiu convencer que a sua carreira seria brilhante. Tão brilhante, disse-lhe, que em breve se instalaria no palacete, em Hyde Park Gardens, que acabavam de cruzar. Em 1892, Nevarte e Calouste casavam-se.
Convencido que o futuro estava no petróleo, Calouste regressou a Constantinopla e instalou-se no palácio dos Essayan, mas não correu bem. Primeiro, perdeu dinheiro num negócio de exportação de ta­petes que tinha com os irmãos e, em 1895, recomeçaram os massacres de arménios, primeiro na Anatólia, depois em Constantinopla. Os Essayan deixaram logo a Turquia, mas Calouste e Nevarte foram forçados a ficar, por esta estar grávida. Nascido o primeiro filho, deixaram a cidade. Atrás deles, ficavam 300 mil arménios assassinados.
A bordo do navio, Calouste encontrou um russo, o magnata do petróleo Mantachoff, de quem mais tarde seria representante em Londres. No Cairo, o parentesco com Nubar Pasha abriu-lhe as portas da elite local e pô-lo em contacto com os Rothschilds e os Barings, mas, determi­nado a enriquecer, partiu para Londres. Verificou que o sector petrolífero era dominado pela Standard Oil, ao lado da qual a Royal Dutch Company for the Working of Petroleum in the Dutch East India era uma insignificância. Com um grupo de amigos, empenhou-se na fusão desta companhia, ho­landesa, com a inglesa Shell Transport and Trading Comp. Nascia a Royal Dutch Shell.
Depressa ultrapassou o papel de represen­tante do lobby russo. Após um erro inicial, ter recusado uma concessão petrolífera na Pérsia (que deu origem à Anglo-Per­sian Comp.), empenhou-se nas negociações, entre os ingleses, alemães e turcos que, em vésperas da I Guerra Mundial, haviam de conduzir ao lançamento da Turkish Petroleum, um colosso que viria a controlar os poços petrolíferos do Iraque.

O exiladoEm 1908, na pátria de Gulben­kian, um grupo de militares destronava o sultão. Inicialmente, as simpatias dos jovens turcos pareciam voltar-se para a Ingla­terra, onde, até à brutal supressão das reivindicações albanesas em 1911, gozaram de apoio. Confiante nas perspectivas abertas pela mudança de regime, o governo britânico fomentou a criação de um banco, o National Bank of Turkey, tendo con­vidado Gulbenkian para conselheiro. O objectivo deste era claro: convencer o conse­lho de administração do banco, contrário à ideia, a concentrar os investimentos no petróleo. Gostando de correr riscos, Calouste jamais se interessou por pagamentos fixos. Começou por exigir uma percentagem de 40 por cento dos lucros, número que, após pressão do Foreign Office, aceitou baixar para 5 por cento. Começava a carreira de Mr. Five Per Cent, um número a que se manterá fiel toda a sua vida.
Pouco depois, rebentava a I Guerra Mundial. Em 1915, Gulbenkian era nomeado delegado do grupo Royal Dutch junto do governo francês, com a missão de tratar do problema do abas­tecimento de petróleo à França. No final do conflito, o mundo mudara o suficiente para que até os negócios de Gulbenkian fossem afectados. A Revolução de Ou­tubro na Rússia expropriara Mantachoff, desta forma atin­gindo Gulbenkian. As esperanças que depositara numa restauração dos czares desapareceram. Manter-se-ia distante das preferências políti­cas dos amigos, incluindo as do general Bragatumi, lutando, de armas nas mãos, por uma Arménia independente, como depois se manteria distante dos que pretenderam isolar os homens do petróleo russo com o argumento de que eram comunistas.
Na sua terra natal, os conflitos prolongavam-se. Os gregos tinham invadido Esmirna, os franceses a Síria e os ingleses a Mesopotâmia, ex-províncias do Império Otomano. Em Março de 1920, os Aliados ocuparam Constantinopla, passando a governar a região através de um sultão pró-britânico. No inte­rior, Mustapha Kemal, mais conhecido como Ataturk, apela­va à luta contra o Ocidente. Só em 1923 se assinaria um armistício, segundo o qual os ingleses sairiam de Constantinopla, os Estreitos seriam desmilitarizados e a Turquia cederia a Síria, a Mesopotâmia, a Palestina e a Arábia, deixando de exercer soberania sobre o Egipto, Chipre e Sudão.
Em 1922, tal como a Geórgia e o Azerbeijão, a Arménia era anexada pela URSS. A partir de então, Gulbenkian tornou-se oficialmente um exilado. Mas, ao contrário do que sucedia no caso da família de sua mulher, as comunidades arménias pouco o interessavam. Em 1921, até re­cusou representar os povos arménios na Conferência de Paz. Mais tarde, quando soube que a mulher prometera deixar o seu dote para, após a sua morte, ser fundada uma escola para as crianças da diáspora arménia, ficou furioso.
No pós-guerra, o mapa do petróleo mudara: o pior não era tanto o facto per se, mas a indefinição de poder. Os terrenos onde o petróleo abundava tinham pas­sado para as mãos de uma dezena de emires árabes, controlados pelos ingleses e franceses. Mesmo aceitando que a concessão que o sultão dera em 1914 ao grupo ligado ao National Bank of Turkey continuava válida, ninguém sabia quem mandava nos territórios. Em 1923, a Turquia cedera a Mesopotâmia ao futuro Iraque, mas os terrenos a oeste do Tigre, ou seja, a área de Mossul, con­tinuavam sem dono, situação que só se esclareceria, e parcialmente, em 1925.

O desenhador de mapasNo meio desta confusão, Gulbenkian consolidava o seu poder. Veja-se o papel por ele desempenhado na definição das fronteiras no pós-guerra. Em 1928, pegou num lápis vermelho e, sobre um mapa, traçou um risco, proclaman­do: "É este o Império Otomano, tal como o conheci em 1914. E eu tenho obrigação de saber. Nasci lá, vivi lá e servi-o." Dentro da linha vermelha, estavam a Arábia Saudita, o Bahrein, o Qatar e os emirados, o que satisfez os ingleses; o facto de o Kuwait estar de fora permitiu aos americanos alimentar espe­ranças. As partes concordaram sobre a forma de dividir as acções da Turkish Petroleum: a An­glo-Petroleum ficava com 47,5 por cento; a Royal-Dutch com 22,5 por cento; a França com 25 por cento; e, como de costume, Gulbenkian com 5 por cento.
Nem todos gostaram do arranjo. Para os americanos, não eram apenas os franceses que deveriam entrar no clube do petróleo. Apesar do seu ódio à Standard Oil, Gulbenkian percebeu que lhe convinha inventar um esquema que permitisse a inclusão de uma empresa americana, coisa tanto mais urgente quanto os EUA tinham passado a advogar a liberalização do sector. Enquanto preser­vava os seus 5 por cento, as quatro companhias - a inglesa, a americana, a holandesa e a francesa - ficavam, cada uma, com 23,75 por cento.

O coleccionadorEntretanto, arranjara tempo para coleccionar obras de arte. Na opinião do grande crítico de arte, Kenneth Clark, ele era, em 1930, "o mais impressionante coleccionador da Europa". Eis como este o descreve, após a visita que lhe fez em Paris: "Seria uma asneira reclamar-se da sua amizade, mas posso afirmar que, durante os dez anos subsequentes, acabei por o conhecer tão bem quanto uma pessoa qualquer, de fora do círculo familiar, o podia fazer." Clark conseguiu que Gulbenkian lhe emprestasse os seus quadros para uma exposição na National Gallery, de que era director, tentando convencê-lo a deixar tudo à instituição depois da sua morte, coisa a que, na altura, Gulbenkian assentiu, embora tivesse declarado que não pretendia pagar qualquer tipo de impostos nem ali, em Inglaterra - uma excepção que implicava o Parlamento promulgar uma lei especial - nem em França, onde oficialmente residia, e onde a legislação estipulava ter de deixar um terço da fortuna à família. Eis o que, após a visita, Clark acrescentou: "Era, sem dúvida, um dos seres mais fantásticos que me foi dado encontrar. A sua força de vontade e a sua energia eram indiscutíveis. Além disso, possuía um intelecto formidável. Conheci poucos homens - talvez apenas Bertrand Russell e Maynard Keynes - que conseguissem analisar uma afirmação concreta mais rápida e definitivamente do que ele."
Em Julho de 1940, Gulbenkian seguiu Pétain até Vichy, não por apreciar o velho general, mas por não estar para aturar as más-criações dos soldados alemães que tinham invadido Paris. Naturalizado inglês desde 1902, teve de ressuscitar os seus laços orientais, tendo-se feito nomear conselheiro comercial da embaixada persa junto do governo francês. Foi como diplomata que deixou a Avenida de Iena. O filho, Nubar, ficou em Londres e ajudou, por sua conta e risco, os serviços de espionagem britânicos. Quando, em Abril de 1942, os persas optaram pela causa dos Aliados, Gulbenkian foi forçado a deixar o Hotel Majestic, onde convivia, paredes meias, com o governo de Pé­tain.

A ideia de LisboaAos 73 anos, uma nova deslocação não era agradável, mas Gulbenkian percebeu que não podia continuar a viver em França. Terá sido o filho que lhe recomendou Lisboa, depois de lhe ter mencionado a hipótese da Suíça. Na Primavera de 1942, acompanhado pela mulher, a secretária francesa, o cozinheiro oriental, um massagista e um criado, Gulbenkian chegava a Lisboa. Quando desembarcou, o estuário do Tejo ter-lhe-á trazido à memória a Constantinopla da sua infância. Além disso, a paz de Lisboa, preciosa no meio das convulsões europeias, soube-lhe bem. Optou por se instalar num hotel, o Aviz, dirigido por dois irmãos de Gibraltar. Ocupou a suite por cima da en­trada, ali aguardando, entre as escuras alcatifas dos corredores e o elevador doirado, que a guerra terminasse.
Levantava-se às oito da manhã, após o que era massajado; seguia-se a leitura dos jornais e correspondência; por volta do meio-dia saía para um passeio pelos arredores. Quando o tempo o permitia, ditava ao ar livre as cartas que tinha de enviar para Londres, Paris ou Nova Iorque. Após o chauffeur francês, que o servia, se ter recusado a deixar o país natal, optou por um carro de aluguer português. A obsessão com a poupança ia ao ponto de veri­ficar os quilómetros, conferindo, num pequeno livro, se tudo estava em ordem. Vinha almoçar pelas três. Comia sempre na mesma mesa, erguida sobre um estra­do, de maneira a esconder a sua diminuta estatura.
As figuras famosas que então passaram por Lisboa, Humberto de Itália, Horthy da Hungria, Carol da Roménia, o duque de Windsor, os príncipes Alexan­dre e Nicolau da Jugoslávia, o rei Faiçal do Egipto, causavam-lhe mais irritação do que agrado. Em novo, quando a mulher abria, às quartas-feiras, os salões, fizera um esforço para conviver. Com os anos, desistira. Em 1945, a mulher regressou a Paris. Sem motivo que o justificasse, ele manteve-se em Portugal. A permanência era-lhe indiscutivelmente favorável do ponto de vista fiscal, mas a verdade é que também se habituara à docilidade do povo, à limpeza das ruas, à calma dos arredores.
Uma ou duas vezes por ano, deslocava-se a França. O grande amor da sua vida, um sentimento imprevisível num homem singularmente destituído de afectos, era um jardim perto de Deauville, por ele comprado na década de 1930. Quando a guerra eclodiu, tinha conseguido reunir, à beira do Atlântico, uma propriedade com 40 hectares, tendo contratado um dos mais caros arquitectos paisagistas da Europa, Duches­ne, para dela tratar. Foi essa a razão que o levou a conhecer Saint-John Perse, com quem, nos intervalos dos negócios, falava de azálias, rododendros e carvalhos. No diário, que manteve numa viagem pelo Mediterrâneo, escreveu: "Os dois grandes sonhos que não pude realizar foram ser cientista e sonhar num jardim por mim desenhado."
Os efeitos da II Guerra Mundial sobre os seus negócios foram menores do que se possa pensar. Afastada a ameaça alemã, a extracção do petróleo no Médio Oriente recomeçou em grande escala e, com ela, os seus lucros. Mas a decisão de ter ido viver para Vichy teve um resultado inesperado: de acordo com a legislação inglesa, ao considerá-lo an enemy under the Act, o governo con­fiscara-lhe os bens. Julgando-se acima do comum dos mortais, ficou indignado.
Deve ter sido por esta altura que, pela primeira vez, considerou a hipótese de criar a fundação fora deste país. Em 1943, por influência de Cyril Radcliff, um dos mais reputados advogados britânicos, a condição de "inimigo" era-lhe retirada e devolvido o seu património, mas Gulbenkian não era homem para esquecer uma afronta.
Em 1945, provavelmente por motivos políticos, K. Clark demitia-se de director da National Gallery, pelo que as conversas com Gulbenkian se orientaram noutro sentido. Num dia em que os dois se passeavam pelos arredores de Lisboa, Gulbenkian mencionou-lhe os portugueses com simpatia - "são preguiçosos e incapazes de aproveitar uma oportunidade mas gosto deles" -, o que terá levado Clark a propor-lhe a hipótese de a fundação ficar em Lisboa: "Os portugueses são um povo particularmente pobre e particularmente destituído e todos os seus esquemas para benefício da Humanidade teriam mais impacto aqui do que em qualquer outro país. Além disso, a sua colecção de arte transformar-se-ia no centro artístico de Lisboa, conseguindo trazer visitantes até esta relativamente ignorada cidade."
Gulbenkian terá proferido um som incompreensível, mas Clark considerou que ficara a meditar no assunto. Honestamente, o crítico de arte acrescentou: "Não pretendo ser responsável pelo facto de a Fundação Gulbenkian ter ficado em Lisboa. Isto foi conseguido por um homem notável, chamado Dr. Perdigão, o qual conseguiu ultrapassar as dificuldades legais."
No que respeita ao petróleo, a balança de poder alterava-se. Mais uma vez, as companhias americanas argumen­tavam que, uma vez que o seu país tinha contribuído para a vitória dos Aliados, era justo que usufruíssem dos lucros do pe­tróleo. Pouco a pouco, foram chegando a acordos separados, com a Shell, com a BP, até com os franceses, mas Gulbenkian optou por arrastar os pés. Com a ajuda de Radcliffe, lutou contra as suas reivindicações, tendo, em 1948, sido forçado a assinar um acordo: os americanos poderiam desenvolver o petróleo na Arábia Saudita, mas não interfeririam no "seu" Iraque.

O controlador infielSe algum traço está nos testemunhos dei­xados por gente que conheceu este homem é o seu autoritaris­mo. Gulbenkian queria controlar tudo, sempre e absolutamente. A figura mais trágica é a de sua mulher, uma menina extrovertida, transplantada de um palácio à beira do Bósforo. Manter-se-iam casados até ela morrer, embora, a partir de certa altura, dormissem em quartos separados e, muitas vezes, em hotéis diferentes. Este distanciamento explicará o facto de, ao morrer, Nevarte ter deixado instruções no sentido de ser enterrada em Nice, entre o irmão, Yervant, e o tutor alemão, Dev­gantz, que servira a família durante 70 anos. Gulbenkian considerava o casamento uma instituição que não acarretava obrigações de fidelidade. Acreditou, até morrer, que lhe fazia bem à saúde fazer amor com rapariguinhas.
Tinha aliás uma preocupação mórbida com a saúde, a qual derivava, em parte, da sua convicção de que teria de viver tanto quanto o avô, Hadji Avedik Agha Gulbenkian, que morrera aos 105 anos. Alguns charlatães levaram-no a seguir dietas à base de nabos esmagados, coisa que, para alguém que apreciava o beurek (massa folhada turca) deve ter sido penoso. Nunca se habituou à vida das grandes capitais, nem às doçuras da sua civilização. Para os jantares que dava, em Londres, só convidava colegas de negócios, compatriotas eminentes ou herdeiros a tronos.
O seu secretário inglês, David Young, que su­portou ao longo de décadas as suas idiossincrasias, acabou por abandoná-lo, quando, num típico acesso de avareza, Gulbenkian lhe reduziu o ordenado. Quando morreu, a Newsweek escreveu: "Era talvez o homem mais rico do mundo; era, seguramente, um dos mais misteriosos."
Teve um primeiro arrufo com o filho Nubar quando este se casara com uma espanhola. Depois de terem feito as pazes, em 1930, as relações voltaram a deteriorar-se. O motivo é revelador. Nubar, então com 44 anos, decidira almoçar no escritório do pai, onde trabalhava, e mandara vir um frango em geleia com espargos. Semanas depois, quando o pai estava a conferir despesas, deparou-se com os 18 xelins desse almoço. Um escriturário encarregou-se de lhe revelar o nome do "criminoso". Seguiu-se a inevitável cena. A obsessão do pai com o esforço - quando começou a trabalhar, Nubar viu, em cima da secretária, um placard com a máxima "Não há nada mais divertido do que o trabalho" - levou o filho a declarar, como filosofia de vida, o princípio de que o traba­lho nunca deveria interferir com o prazer.
O autoritarismo do pai acabou por conduzir Nubar, inteligente, culto e sensível, a uma vida de playboy. Educado nos melhores colégios britâ­nicos, Nubar foi tratado com aquele misto de severidade e protecção que dá cabo dos melho­res. Por desconfiar das vantagens da educação física inglesa, Gulbenkian conseguiu que o filho fosse dispensado da ginástica, depois de ter insistido em pagar uma canalização nova, por estar convencido que os canos da public school causariam doenças no filho. Um dos episódios que me­lhor revelam o seu carácter diz respeito à inicia­ção sexual do filho. Quando completou 16 anos, o pai marcou-lhe uma consulta num médico em Paris, o qual lhe apresentou uma rapariguinha de 20 anos, previamente examinada. Foi-lhe dito que se metesse num táxi, levando a menina para uma maison de rendez-vous, também recomendada pelo pai.
Em relação à filha, o seu comportamento não era menos opressivo. Mais dócil do que o irmão, Rita teve menos problemas. Aceitou casar-se com o primo, Kvort Essayan, mas, em troca, exigiu que o pai a libertasse das lições de piano. O casamento seguiu os tradicionais arranjos ar­ménios. Generoso nas mesadas, Gulbenkian recusou-se sempre a dar aos familiares, que com ele trabalhavam, um salário regular. A ideia de dividir com eles a fortuna horroriza­va-o. Em 1930, quando as jóias da filha foram roubadas, ficou tão indignado que lhe cortou a mesada.

A morte, sozinhoMas o desaparecimento da mulher, as zangas com o filho e os desgostos com o genro afectaram-no mais do que pensava. Nos últimos tempos, já nem conseguia comer os éclai­res de chocolate de que tanto gostava. De entre os portugueses, apenas tinha contacto com um médico, Fernando da Fonseca, e um advogado, Azeredo Perdigão. Dos es­trangeiros, via cada vez menos gente: até com K. Clark amuara.
A 14 de Abril de 1955, Nubar visitara-o, partindo, a seguir, para Baden-Baden. A filha e o genro, que estavam em Lisboa, foram passear até Coimbra. Gulbenkian morreu sozinho.
Há muito que Gulbenkian vinha a planear a criação de um organismo que, perpetuando o seu nome, concentrasse a sua colecção de obras de arte e contribuísse para apoiar actividades científicas, artísticas e filantrópicas. Não é possível afirmar, com segurança, qual o motivo que o levou a sedear a sua fundação em Portugal. Dois factores devem ter desempenhado um papel: a sua fobia aos impostos e o pouco amor que devotava aos americanos, na sequência das rivalidades ligadas ao petróleo. Finalmente, as conversas com Clark e Azeredo Perdigão ajudaram-no a optar por um país onde, no final da vida, se sentira bem.
Durante os anos 1950, trabalhou a ideia com Rad­cliffe, mas a perspectiva de preparar um testamento horro­rizava-o. Redigiu um primeiro, no qual mencionava, em termos vagos, a criação de uma fundação, especificando que "confiava que a família pusesse em prática o espírito dos seus desejos", mas não tardou a fazer outro, no qual mencionava já os nomes para a administração: Lord Radcliffe para presidente e, para vogais, o genro Kvork Essayan e o advogado que o tinha ajudado a redigir o texto, Azeredo Perdigão.

A decisão de SalazarO arranjo viria a gerar, após a sua morte, enorme controvérsia. Verificou-se que Nubar não era referido como administrador, mas o pior estava para vir. Segundo instruções do governo português, Azeredo Perdigão passou a exigir que a maioria dos administradores fosse português e, pior ainda, que a maior parcela das verbas fosse gasta em bene­fício dos seus compatriotas.
Indignado, Radcliffe deslocou-se a Lisboa para informar Salazar que, de acordo com a vontade do fundador, a instituição tinha de ser internacional. Não foi esse o entendimento do Presidente do Con­selho, nem o dos juristas de Coimbra, chamados a acolitar Azeredo Perdigão.
Em Julho de 1956, sob as assinaturas de Azeredo Perdigão e K. Essayan, eram publicados os estatu­tos do organismo que Gulbenkian nos legara.
Que ele era um homem inteligente, ninguém o discute. Era também um dos poucos capazes de falar simultaneamente com os ocidentais e os orientais. Destes, herdara a paciência, a capacidade negociadora e o amor pelo secretismo; dos primeiros, o realis­mo, a racionalidade, os conhecimentos técnicos. Estimulou sempre os governos ocidentais a serem duros com o Oriente. No período entre as guerras, terá dito a Sir W. Tyrrell: "A única maneira de se lidar com os orientais é atra­vés da força, pondo-se-lhes o pé em cima do pescoço", acrescen­tando, entre sorrisos: "Naturalmente, convém que os sapatos tenham sola de borracha, para o barulho não nos incomodar."
Olho, a terminar, a fotografia tirada, em 1935, durante uma visita ao Egipto. Sob aquele insólito colete, é difícil descobrir a Scutari natal. Gulbenkian parece um turista europeu de visita ao templo de Edfu. O perfil altivo do falcão, representando o deus Horus, deve ter-lhe agradado. E é assim que, nós, portugueses, o recordamos, na estátua erguida entre a Avenida de Berna e a Praça de Espanha.

Para este trabalho, consultaram-se as seguintes obras: K. Clark, Another Part of the Wood, Nova Iorque, Harper and Row, 1974 e do mesmo autor The Other Half, Londres, John Murray, 1977; F. Correa Guedes, Calouste Gulbenkian: uma Reconstituição, Lisboa, Gradiva, 1992; N. Gulbenkian, Pan­taraxia, Londres, Hutchinson, 1965; J. Lodwick, Gulbenkian, Londres, Heinemann, 1958; J. Azeredo Perdigão, Calouste Gulbenkian, Coleccionador, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; S. H. Longrigg, Oil in the Middle East, Oxford Uni­versity Press, 1968; R. Hewins, Mr. Five Per Cent, Londres, Hutchinson, 1957; R. O"Connor, The Oil Barons, Londres, Hart Davies MacGibbor, 1972; Expresso, 2-3-1991; Newsweek, 1-8-1955; Público, 22-3-1991; Times, 21-7-1955 e 12-1-1972; Who"s Who, 22-3-1955.

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