"As escadas eram um aquecimento para a tortura que vinha a seguir"

Contra o esquecimento, vários resistentes ao salazarismo visitaram ontem a antiga sede da PIDE-DGS, no Porto, e reviveram episódios da tortura fascista. São pedaços do passado que, alerta o movimento "Não Apaguem a Memória", urge preservar. E porque não transformar aquele espaço num museu dedicado à resistência contra a ditadura?

"Quando se saía das salas de interrogatório, a alucinação e a tentação de suicídio eram muito fortes" - Jorge Araújo. "Lembro-me de sair deste gabinete, onde estava Rosa Casaco, e de o ouvir discutir com outro que achava que eu ia falar" - Pedro Baptista. "Às quatro da manhã do dia 24 ouvimos gritar "Morte à PIDE" e ficámos a achar que se tinham enganado, porque deviam dizer "Viva a PIDE". O guarda disse-nos que era uma manifestação de estudantes" - Jorge "Pisco". As frases soltam-se anárquicas da boca dos vários ex-presos políticos que, ontem à tarde, revisitaram a antiga sede da PIDE-DGS, no Porto. Situado na Rua do Heroísmo, o edifício preserva muitos sinais da passagem da polícia política do Estado Novo. Mais do que isso: da violência que os agentes exerciam sobre os prisioneiros que, ao longo de quatro décadas, foram ali detidos e torturados. E é para que a ditadura não caia no esquecimento que o movimento Não Apaguem a Memória, que organizou a visita, luta pela transformação daquele edifício em museu da resistência.
"Aqui era o canto onde os prisioneiros recém-chegados eram fotografados", aponta Jorge Araújo, enquanto atravessa um corredor exíguo. Direito à cela onde esteve prisioneiro, entre 27 de Abril e 6 de Agosto de 1962, quando conseguiu fugir, recorda: "Ficávamos aqui fechados, à espera que nos viessem buscar para a tortura. Uma mesa, um balde para as necessidades e mais nada. Ah, e os ratos...".
O grupo, composto por cerca de 30 pessoas, vai-se espalhando pelos cantos da casa. As escadas em caracol que conduzem ao terceiro andar reavivam fantasmas. "Para os interrogatórios ia-se por esta escada acima. Um preso uma vez atirou-se contra uma das janelas", conta Manuel Jorge Carvalho, director do Museu Militar que, desde 1980, se alberga no edifício. "O subir as escadas era um aquecimento para a tortura que vinha a seguir", contextualiza Jorge Araújo. "Às vezes, não se conseguia descer sozinho, mas era sempre um alívio, sinal de que a tortura tinha acabado", recorda outro ex-preso.
Os gabinetes de interrogatório-tortura são do tamanho de uma despensa. "Além da tortura da água e do sono, havia o chamado carrossel, em que quatro ou cinco guardas se punham em roda e o preso no meio a apanhar de todos. Havia um que tinha a mania da régua: durante a tortura do sono, se o preso cambaleava, dava-lhe com a régua em cutelo. Ainda aqui tenho a marca no nariz", mostra Jorge Araújo.
É raro ouvir o editor da Campo das Letras recordar esse período. E se o faz agora é porque acredita que a preservação da memória é a melhor forma de evitar a repetição dos erros do passado. "Os resistentes não gostam de falar da tortura, designadamente os do PCP, que valorizam o colectivo e desvalorizam o individual", comenta Manuel Loff, historiador e membro do núcleo do Porto do movimento Não Apaguem a Memória.
Criado há dois meses, este núcleo procura lançar as bases para que a antiga sede da PIDE acolha um museu dedicado à resistência à ditadura salazarista. A visita dos ex-presos quer-se assim como uma forma de mobilizar atenções para esse projecto - que implicaria a transferência do Museu Militar, eventualmente para a serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia.
"A ideia é preservar a memória da resistência, e isso faz-se com a musealização dos espaços. Se não houver descrições individuais dos casos, é difícil guardar a memória da repressão, porque as ditaduras raramente deixam marcas fotográficas ou filmográficas", acrescenta o investigador, que conta, a partir do Outono, começar a filmar depoimentos dos antigos presos do Porto. O resto do acervo poderia alimentar-se, entre outro material, da documentação da PIDE, cujo arquivo jaz na Torre do Tombo, em Lisboa.
"Espero que este movimento tenha êxito no projecto de criar o museu. Era muito importante que os miúdos da escola pudessem cá vir. Eu tenho dois filhos e, não fosse o que lhes vou contando, nem saberiam o que foi o 25 de Abril", apoia Jorge "Pisco". E davam para encher uma albufeira as memórias que este pescador de Matosinhos, agora com 59 anos, guarda da repressão salazarista. "Quando ouvimos gritar "Morte à PIDE e a quem os apoia" e continuavam sem nos dizer nada, começámos a exigir saber o que se estava a passar. Há um que consegue espreitar um jornal do guarda que falava nos militares, mas, durante algum tempo, julgámos que era um golpe de Estado mais à direita", recorda. Ele que foi o último preso político a ser libertado no Porto, a 26 de Abril de 1974.
A confirmação oficial foi dada na passada quarta-feira: o Museu Militar do Porto vai ser transferido para o Mosteiro da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia. E, segundo o chefe de Estado-Maior do Exército, Valença Pinto, a transferência deverá efectuar-se durante este Verão. O edifício que acolheu a PIDE-DGS, entre o início da década de 30 e 1974, poderá assim ficar disponível para acolher o Museu da Resistência. Numa fase ainda embrionária do projecto, o movimento Não Apaguem a Memória não dispõe de compromissos oficiais de disponibilização do edifício, que pertence ao Exército. "Estamos interessados no estudo e divulgação do aparelho repressivo, mas não nos cabe abrir museus", afirma Maria Rodrigues, do núcleo portuense do movimento. "Estamos ainda a desbravar caminho", acrescenta Raul Simões Pinto, mais confiante de poder ver agora concretizada a proposta de criação do dito museu que foi rejeitada pela Sociedade Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura. Da parte do Ministério da Defesa, nenhum sinal foi ainda dado quanto ao destino reservado para o edifício da antiga PIDE. O historiador Manuel Loff teme que este siga o exemplo da sede da PIDE, em Lisboa, que foi transformado em condomínio privado.

Sugerir correcção