À procura de um nariz

A ironia e o sarcasmo foram também a defesa de Chostakovich face às contrariedades impostas pelo totalitarismo; esse é também um traço musical, com toda a ambiguidade, e exige uma grande familiaridade. Daí decorre o grande limite desta produção: ao notório esforço em palco não corresponde a desfasada direcção musical

Éo título do último número da revista Grammophone: "Why are we obsessed with Shostakovich?". Na considerável reconsideração do compositor, tão saliente ao longo dos últimos 20 anos, há, de par com o reconhecimento de uma grandeza que designadamente, embora de modo irregular, se manifesta sobretudo nos conjuntos de 15 sinfonias e outros tantos quartetos, dois factores particularmente polémicos, de cuidadosa ponderação.
O primeiro são as chamadas Shostakovich wars (mantenho nestes casos a grafia inglesa) na sequência da publicação em 1979 de Testimony, testemunho do compositor supostamente recolhido por Solomon Volkov, cuja autenticidade tem sido fortemente contestada, desde logo, em 1980, pela musicóloga Laurel E. Fay. De acordo com o chamado "testemunho de Chostakovich" ou "livro de Volkov", conforme as perspectivas, o compositor teria sido afinal um "resistente", traço que aliás Volkov acentuou em Shostakovich and Stalin, o estado desta polémica musicológica, estrondosa como talvez nenhuma outra, podendo verificar-se em A Shostakovich Casebook.
Sucede que essa "nova imagem" não é indiferente à segunda questão, ainda que esta venha também sendo alimentada por quem se coloca no campo anti-Volkov, caso do brilhante musicólogo Richard Taruskin. Tratar-se-ia, no fundo, de tomar Chostakovich como exemplo de uma outra via possível na música do século XX, em última análise acabando-se sempre por o opor a Schönberg.
Sobre o facto de eles serem sim os dois mais polémicos compositores do século já eu próprio escrevia há precisamente dois anos, quando de outro final de temporada do São Carlos, com o facto marcante de finalmente se estrear em Portugal uma obra maior de Schönberg - "agora depois dos Gurrelieder, entre as indiscutíveis obras maiores da primeira metade do século ainda por estrear em Portugal resta uma, crucial: Lady Macbeth do Distrito de Mstensk de... Chostakovich.", escrevi então. Afinal não foi ainda desta vez que houve Lady Macbeth no seu original (a versão revista, e de apresentação possível na União Soviética, Katerina Ismailova, foi apresentada no São Carlos pelo Kirov) mas sim O Nariz, até erroneamente anunciada como estreia em Portugal (facto já corrigido no programa), na que é de qualquer modo a primeira produção portuguesa de uma obra cénica do compositor russo.
Importa-me este quadro porque, tanto mais não havendo perspectiva crítica da recepção de Chostakovich em Portugal, tenho por uma vez que dizer que a contextualização no texto do programa de O Nariz é infeliz. Bastam dois exemplos: citação acrítica das "memórias" publicadas por Volkov, apenas com deslocada e breve menção de que são questionadas, e total desconhecimento de quem foi o primeiro dos libretistas, Evgueni Zamiatiane, o autor de Nós, a primeira das grandes narrativas distópicas do século XX (publicada pela Antígona), anterior a 1984 e O Admirável Mundo Novo. Se Chostakovich, insatisfeito, recorreu depois a outros, Ionine e Preiss, na detalhada biografia escrita pelo compositor polaco Krzystof Meyer está indicado que de Zamiatiane resta o crucial monólogo que conclui o Acto II: "Meu Deus, Meu Deus, porquê esta desgraça? Faltasse-me um braço ou uma perna, ainda passaria, mas um homem sem nariz não passa de um ser híbrido, um pássaro que não é um pássaro, um cidadão que não é um cidadão".
Sendo o centenário do nascimento do compositor a razão de ser da programação e da produção, é de lamentar esta falta de contextualização e de aparato crítico, tanto mais que, tendo sido convidada a equipa João Lourenço/Vera San Payo Lemos, a última, a dramaturgista, mesmo fora do seus terrenos mais habituais, mas com a conhecida seriedade do seu trabalho, teria introduzido certamente outros elementos aos espectador.
Acontece que tudo isto, que poderiam ser notas de rodapé, é afinal extremamente importante para se perceber o interesse de Chostakovich por Gogol, e como essa predilecção, concretizada nesta ópera do homem que perdeu o nariz, se prende com um seu traço fulcral: o pendor para a ironia e o sarcasmo.
A ironia e o sarcasmo foram também a defesa de Chostakovich face às contrariedades impostas pelo totalitarismo, como a proibição de Lady Macbeth, crê-se que ditada directamente por Estaline; esse é também um traço musical, o acento chostakovichiano da tendência para o material em 2º grau, que nas sinfonias se esclarece em clara descendência de Mahler. E esse particular traço, com toda a ambiguidade, é difícil de lograr e exige uma grande familiaridade. Daí decorre o grande limite desta produção: ao notório esforço em palco não corresponde a desfasada direcção musical de Donato Renzetti.
Não se trata de modo nenhum propriamente da realização orquestral, até com excelentes contributos solistas e de "naipe" (as percussões), mas sim propriamente de uma direcção retida e pouco agreste, e nesse sentido muito pouco ou nada em sintonia com as coordenadas da obra e do compositor. Pergunto-me mesmo se não teria mais frutuosa a opção de confiar por inteiro na equipa constituída e experimentada de Lourenço e João Paulo Santos, em vez de "gentilmente" confiar ao segundo apenas a direcção da última récita, amanhã.
Lourenço conseguiu aqui em larga escala a precisão apurada em Notícias do Dia de Hindemith, do conhecimento das estéticas da Alemanha dos anos 20 vindo também um grotesco que por vezes evoca Groz, neste caso tentando uma aproximação também, em incontornável referência no que à obra diz respeito, à "biomecânica" de Meyerhold; só creio que lhe terá escapado a manifesta influência do burlesco cinematográfico.
Um caso, um chefe de polícia sem voz, é lamentável, mas este é também um importante trabalho de conjunto, ainda que com saliência do homem que perdeu o nariz, Andrew Schroeder, e, na própria saliência perdida, um Carlos Guilherme a redescobrir-se como tenor de carácter. Tanto mais se lamenta uma direcção musical a contrario. Crítico

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