Ana Moreira no inferno, uma actriz do céu

E se a melhor interpretação até agora vista neste festival fosse de uma actriz portuguesa, num filme que nem sequer está em competição (foi exibido na Quinzena dos Realizadores)? E não tem nada a ver com o facto de, em Transe, ela falar russo, alemão, italiano, português...Chama-se Ana Moreira, e, para quem interpreta uma personagem que passa o filme inteiro a dizer "não quero chorar", tem os olhos incrivelmente húmidos. Mas como a personagem Sonia, Ana olha de frente. E olha de frente para a personagem.
"Porquê a grande contenção? Porque estamos na entrada do inferno. E Sonia não entra lá. Vê. O Mal está a observá-la a ela. A provocá-la e a testá-la. Ela está a observá-lo também. Encara-o com curiosidade. Para ver qual é o limite. E ver, quando isso chegar, o que vai acontecer. Mas sempre fiel à sua natureza, à sua dignidade, a única coisa que tem."
E o que acontece quando esse momento chega? "Acho que ela precisa de descansar."
Não há forma mais justa, e é de uma serenidade tão evidente, para definir o que se passa no filme de Teresa Villaverde. É como Ana Moreira o diz. Não é por acaso que Transe é um pacto entre um filme e uma personagem, entre uma realizadora e uma actriz (recorde-se, Teresa dirigira Ana em Os Mutantes).
Ana Moreira diz que a sua experiência em Transe, cuja rodagem começou em São Petersburgo, na Rússia, foi, simultaneamente, a "mais completa, a mais dura, e a mais divertida". Divertida? "Sim, porque as pessoas vêem o filme, mas não sabem o que se passou para lá do filme..."
"Foi muito importante começar este trabalho em S. Petersburgo. Foi só aí que percebi o temperamento desta personagem. O contacto com aquela cidade, com aquelas pessoas, foi muito importante: pessoas que por vezes são de um grande mistério, outras vezes são incrivelmente directas. S. Petersburgo é uma cidade enorme, onde uma pessoa se pode sentir perdida, parece um grande teatro de ópera a céu aberto, mas de repente tudo começou a fazer sentido para mim. Houve um momento em que aquela mulher começou a olhar dentro de mim. Fiquei aliviada."
Ana Moreira e Teresa Villaverde, o que é que se passa entre elas? "Em muitas coisas, até somos de planetas bastante diferentes - começa por dizer a actriz -, mas há um ponto qualquer comum. Há um entendimento intuitivo. Mas ao mesmo tempo há algo muito focado e racional. E depois há uma amizade. Ela conhece-me desde pequena. Ela sabe quando eu estou em dificuldades. E consegue esperar por mim, dar-me tempo para eu fazer o que ela pede. Consegue puxar-me para o mundo dela."
Puxou-a para o inferno, o que neste caso, para Ana Moreira, 25 anos, é um dos céus de uma actriz. V. C., em Cannes

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