Custódia de Belém Gil Vicente me fez há 500 anos

Foi uma encomenda de D. Manuel I ao ourives-dramaturgo feita com ouro que Vasco da Gama trouxe da costa africana. O restauro e uma exposição documental marcam os 500 anos de vida deste tesouro da ourivesaria portuguesa. Por Lucinda Canelas

Conhecemos Gil Vicente como fundador do teatro português ou o dramaturgo que escreveu os Autos das Barcas e o Monólogo do Vaqueiro. Poucos sabem que foi o ourives de D. Manuel e D. Leonor e o criador da célebre Custódia de Belém, que faz agora 500 anos.Para festejar o aniversário, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) preparou várias iniciativas, desde um complexo projecto de restauro que inclui dois especialistas do Museu do Louvre a uma exposição documental com data a anunciar.
Amanhã, a Custódia de Belém será objecto de uma visita guiada, às 18h, com entrada livre.
"A melhor forma de celebrar é divulgar e conservar", diz Dalila Rodrigues, directora do MNAA, que fará a visita com a conservadora para a ourivesaria, Leonor D"Orey. A directora diz que a Custódia de Belém é "a obra mais famosa da ourivesaria portuguesa". Pela inscrição da base, sabe-se que "acabou em 1506", mas desconhece-se a data exacta, porque esta é a única referência cronológica à sua criação.
O restauro da peça em ouro e esmalte, que será feito no museu, deverá estar concluído no final de 2007. "Um projecto de restauro desta natureza é extremamente delicado e complexo", comenta, elegendo como prioritário o reforço da estabilidade da peça e a fixação dos esmaltes.

"Virtuosismo técnico"Ouro, cristal e esmaltes foram os materiais usados por Gil Vicente para construir a Custódia de Belém. A custódia, que é uma peça religiosa onde é guardada a hóstia sagrada, foi uma encomenda do rei D. Manuel I em 1503.
Foram precisos três anos para que o ourives que viria a dedicar-se ao teatro - em 1502 apresentara pela primeira vez o Monólogo do Vaqueiro - concluísse a peça que o rei deixou em testamento ao Mosteiro dos Jerónimos.
"O mosteiro estava ainda em construção quando a encomenda é feita", diz Leonor D"Orey, "mas é nele que D. Manuel pensa quando pede a Gil Vicente que crie esta maravilhosa custódia".
A peça, explica D"Orey, tem cerca de 6,5 quilos, a maioria dos quais em ouro. O seu significado artístico e político está intimamente ligado ao contexto da sua criação, dominado por uma expansão ultramarina que cria um período de grande optimismo e prosperidade, explica a conservadora, acrescentando que o ouro usado por Gil Vicente vinha de um tributo de vassalagem do rei de Quiloa (costa oriental africana) a D. Manuel, pago durante a viagem de Vasco da Gama à Índia e entregue pelo próprio navegador ao monarca português.
"É uma peça de uma enorme complexidade e de um virtuosismo técnico extraordinário", defende Leonor D"Orey, recordando a polémica que no século XIX envolveu a sua autoria. A ligação ao dramaturgo acabou por ser comprovada pela descoberta de umas notas à margem num documento de 1513, em que D. Manuel nomeia Gil Vicente responsável pelas obras de ourivesaria do Convento de Cristo, dos Jerónimos e do Hospital de Todos-os-Santos.
"No documento de 1513, Braamcamp Freire identifica uma nota que diz que o Gil Vicente a que o texto se refere é trovador e mestre da balança [ourives da Casa da Moeda]", explica D"Orey. O nome do dramaturgo vem, aliás, associado à custódia no testamento de D. Manuel (1517). "É raríssimo termos dados escritos relativos a estas peças. No caso da custódia, sabemos quem a fez, quem a encomendou e a onde se destinava."
Na base da Custódia de Belém, Gil Vicente gravou o nome do encomendador e a data da sua conclusão. D. Manuel está também presente na peça através de seis esferas armilares (o "emblema do rei").

Grande teatralidadePara Leonor D"Orey, a custódia é uma "súmula da Fé" - estão lá a Anunciação, os "apóstolos que veneram o mistério da encarnação", a pomba do Espírito Santo, e Deus no trono no topo da cúpula.
"Esta micro-arquitectura do tardo-gótico está fortemente ligada ao mosteiro", diz a conservadora, referindo-se aos que defendem que a custódia serviu de inspiração ao portal sul dos Jerónimos (virado para o Tejo). Esta relação com a arquitectura construída não é única, já que era frequente que estas peças fossem vistas "quase como maquetes", "ensaios mais criativos", cujas experiências passavam, depois, para os edifícios.
Gil Vicente, que era também o encenador das entradas régias, "conjuga nela as linguagens naturalista e arquitectónica de forma muito coerente e com grande virtuosismo": "A Custódia de Belém é uma peça de aparato com grande teatralidade e poder cenográfico."

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