Fernando Lemos "O retrato é perigoso"

Em Portugal o pintor e poeta é sobretudo conhecido pela fotografia e a ligação ao surrealismo, que é uma forma de "optimismo"

Usou a máquina durante quatro anos e não voltou a ela porque durante muito tempo viu as suas fotografias como uma "amante que se quer esconder do olhar dos outros, não porque esteja feia, mas para que não se estrague". Fernando Lemos, 79 anos, o artista português que se mudou para o Brasil em 1953 para fugir ao regime, esteve em Sintra para uma mesa redonda que antecipou o encerramento da exposição que o Museu de Arte Moderna - Colecção Berardo dedica à sua produção fotográfica (1949-1952) e à relação que através dela manteve com o surrealismo português.
"Quis guardar esta amante só na minha imaginação, mas hoje fico contente que ela chegue às pessoas e lhes mostre todos estes amigos", disse o fotógrafo-pintor numa sessão em que participaram os historiadores de arte José-Augusto França e Margarida Acciaiuoli.
O grupo de amigos a que Lemos se refere foi fotografado no seu atelier na Avenida da Liberdade e inclui pintores, escritores, poetas e intelectuais como Vieira da Silva, Marcelino Vespeira, Jorge de Sena, Casais Monteiro, Sophia de Mello Breyner, Alexandre O"Neill, António Pedro e Mário Cesariny.
Lemos descreve-os como "pessoas condenadas pelo sistema, proibidas de agir, de falar, de viver, e que tentavam inventar todos os dias uma maneira de mudar" um país que, acrescenta, estava "enganado, falsificado". "Tenho muito orgulho em todos estes amigos que para o sistema não tinham valor, mas que deixaram obra, que viram o tempo provar que eram pessoas de talento e de ideias."
A exposição Fernando Lemos e o Surrealismo oscila entre o "experimentalismo" de fotografias como Gesto Emoldurado e os retratos "afectivos" de amigos e companheiros próximos. Bernardo Pinto de Almeida, crítico e comissário de exposições, defende no catálogo que na sua obra há "um clima onírico" e um "sentido de invenção de imagem". Para Pinto de Almeida, "Fernando Lemos destaca-se igualmente pelo modo inovador como tomou em mãos um meio de expressão cuja tradição portuguesa era praticamente nenhuma: a fotografia".
Sophia num terraço em Lisboa, o olhar enigmático de Cesariny, o sorriso sereno de José Cardoso Pires. "Acreditávamos uns nos outros e vivíamos como se Portugal estivesse dividido entre "nós" e "eles"", explica Lemos, que acabou por deixar o país depois de a PIDE ter encerrado a primeira exposição em que mostrou o seu trabalho (Azevedo, Lemos e Vespeira, Casa Jalco, 1952). O surrealismo, diz, queria ser "uma vanguarda do humor e do optimismo" no pós-guerra. "Nós não existíamos para falar das ruínas ou para olhar para elas. Fomos atrás de uma alma nova."

Fotografia e pinturaLemos pensava e preparava cuidadosamente os retratos, mas deixava sempre espaço ao elemento surpresa e àquilo a que chama "o automatismo da coisa surrealista". O facto de estar a fotografar pessoas que conhecia bem facilitava o processo. "O retrato é perigoso. Há o risco de cair na caricatura. E é sempre incómodo para a pessoa fotografada porque a máquina invade a intimidade, impõe."
A fotografia Lavagem Cerebral, em que quatro mãos remexem a cabeleira aparentemente postiça de Alexandre O"Neill, é uma das que Lemos recorda com mais exactidão. "Surgiu de repente num café. O"Neill estava a atravessar um período muito difícil em que ameaçou suicídio e chegou deprimido, falando. Eu disse-lhe que tinha de o levar para o meu atelier porque ele precisava de uma lavagem cerebral e assim foi."
Com Vieira da Silva e Sophia de Mello Breyner, as coisas foram diferentes. "Sophia era luminosa, bastava pedir-lhe que se sentasse ou andasse por ali", recorda. "A Vieira podia estar duas horas a falar sobre um quadro, como se estivesse dentro dele a olhar para nós."
Lemos chegava a trabalhar duas ou três vezes sobre o negativo, sobrepondo imagens, para que a sombra e os materiais interagissem no mesmo retrato para criar fisionomias diferentes. "Cada um de nós tem muitas caras", justifica.
As ligações que Margarida Acciaiuoli encontra entre a pintura e a fotografia de Fernando Lemos são para ele muito fáceis de explicar "O meu instinto de actuação na fotografia está muito ligado à pintura", reconhece. "Sou um homem da água, dos reflexos e da reflexão, e os dois estão muito ligados à pintura e à fotografia."
O empresário Joe Berardo acaba de comprar para a sua colecção 117 fotografias de Fernando Lemos, exibidas em Sintra, ao lado de pintura e escultura de surrealistas portugueses e estrangeiros. A exposição, que termina em Sintra no dia 30, segue para o Centro de Artes da Calheta, Madeira, onde ficará de Julho a Janeiro de 2007.

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