"A poesia era oxigénio que ele respirava"

O PÚBLICO assinala os dez anos da morte de Mário Viegas, actor e "dizedor de poesia", com uma colecção inédita de 12 livros, com oferta de CD. Os volumes de Mário
Viegas - Discografia Completa incluem ainda a transcrição dos poemas recitados, histórias das gravações dos discos, críticas da imprensa da época, imagens do espólio do artista cedidas pelo Museu Nacional do Teatro e uma biografia que começa por evocar a sua infância e adolescência em Santarém e, mais tarde, aborda a sua carreira profissional. Amanhã o primeiro volume Palavras Ditas por apenas mais 8 euros, com o PÚBLICO

PÚBLICO - Como e quando é que a sua vida se cruza com a de Mário Viegas?JOSÉ NIZA - Em Santarém, julgo que em 1956, no Bairro de São Bento e em casa dos meus pais. Ele ia lá para a minha mãe lhe ensinar catequese. O Mário tinha sete ou oito anos, muitos caracóis e andava de calções. Eu já tinha dezassete e era caloiro de Medicina, em Coimbra. Dez anos de diferença, nestas idades são o salto de uma geração. Só quando ele começou a fazer teatro e a recitar poemas, é que eu percebi que aquele miúdo era especial.

Como surge a oportunidade de produzir o Palavras Ditas? Em 1969 eu estava na guerra colonial, nas matas do norte de Angola. Um dia recebi um disco que a minha mulher me enviou, e que era o primeiro que o Mário gravara: Mário Viegas diz poemas... Poemas de Joaquim Namorado, Manuel Alegre, Armindo Rodrigues, António Gedeão e Reinaldo Ferreira. O problema foi que, no aquartelamento, só havia morteiros, bazucas e G-3. Gira-discos é que não havia. Ouviu-o meses depois, quando fui a Luanda, e percebi que se tinha encerrado o ciclo João Villaret e começado o de Mário Viegas.
Pouco tempo depois - coincidências felizes -, recebi uma carta do Adriano Correia de Oliveira (que já tinha gravado canções minhas) em que me contava que ele e o Zeca Afonso, me tinham proposto ao Arnaldo Trindade, o maior e mais corajoso editor discográfico da segunda metade do século passado, para dirigir a produção de discos de "prestígio" da editora Orfeu.
De imediato pensei em convidar o Mário Viegas para gravar um disco de poesia em que a música tivesse também um papel importante. Foi assim que nasceu Palavras Ditas, o primeiro dos CD que agora o Público vai começar a editar. Aliás, este mesmo título foi depois levado pelo Mário para a Rádio com o Júlio Isidro. E depois, e a meu convite, para a RTP, numa excelente série realizada por um enorme realizador, o Nuno Teixeira.
Quer uma história curiosa?
Então lá vai: na altura, estávamos em 1972, havia a censura prévia. Os poemas tinham que ser submetidos aos censores do lápis azul. Dos que seleccionámos, cerca de metade foram proibidos, a maioria deles do Manuel Alegre. Não foram incluídos no disco, mas nem por isso deixámos de os gravar. Guardei-os durante 34 anos! Vão agora ser finalmente divulgados, nos últimos discos desta colecção.

Mário Viegas disse uma vez que "funcionava melhor a solo". Foi responsável pela produção de cinco discos de Mário Viegas. Como era trabalhar com o actor? Trabalhar com ele era uma festa, um encontro de amigos, um experimentalismo, uma experiência única. Como, aliás acontecia com o Zeca Afonso, com quem também fiz outros cinco discos, mais ou menos em simultâneo com os do Mário. Só muitos anos depois é que percebi que tínhamos estado a fazer história sem nos darmos conta disso.

"Actor, especialista em todos os géneros". Assim se apresentava Mário Viegas. Que papel tinha a poesia na vida deste artista tão multifacetado?A poesia era oxigénio que ele respirava. Era-lhe vital. O Mário era um profundo conhecedor da poesia portuguesa. Acho que a conhecia toda. E sabia escolher os poemas numa perspectiva de teatralização, do Teatro total. Ele não se limitava a dizer palavras: encenava os poemas, mesmo que fosse apenas com a voz. Era capaz de transformar um texto vulgar, uma simples notícia de jornal, numa obra-prima. Foi um génio. Foi genial. Porque é que a genialidade encurta a vida?
Anedota (popular)
- Está a gravar?
- Está a gravar?
- Tá?!

Sabes aquela anedota de um tipo quefoi a uma taberna e que tinha uma voz
muito fininha e chegou lá e tal...

- Eu quero um copo de vinho!- Quer o quê?! Vá mas é pra casa,
vá engrossar a voz, cresça e apareça,
vá engrossar a voz e depois venha cá
pedir vinho!

O tipo foi pra casa bestialmentecomplexado, e tal..., chegou a casa
e começou a tentar e a treinar mudar
a voz, não é...

- Eu quero um copo de vinho!- Eu quero um copo de vinho!!
- Eu quero um copo de vinho!!!
- Eu quero um copo de vinho!!!!

- Eu quero um copo de vinho!!!!!- EU QUERO UM COPO DE
VINHO!!!!!!

E quando já tinha assim a voz,assim já mais ou menos de vinho,
chegou outra vez à taberna, e chegou
lá e disse:

- Eu quero um copo de vinho!!!- Branco ou tinto?
- Agora é que me lixaste!...

Volume 1Palavras Ditas
Disco original gravado por Mário Viegas em 1972.

1. Anedota - Popular2. Amátia - Jorge de Sena
3. Boletim Metereológico - Retirado de um jornal
4. Epígrafe - José Carlos Ary dos Santos
5. Mãezinha ­- António Gedeão
6. Hino à Minha Terra - Amélia Vilar
7. O Ladrão do Pão - Alexandre O"Neill
8. Palavras - Gastão Cruz
9. Uma Lisboa remanchada - Alexandre O"Neill
10. Correio - Manuel Alegre
11. Poema X - Daniel Filipe
12. Sob o Trópico de Câncer - Vinicius de Moraes

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