Português trabalhou com Christiaan Barnard e recorda como se tornou famoso

O primeiro transplante de coração foi feito a 3 de Dezembro de 1967 por um médico sul-africano, com o qual viria a trabalhar, dois meses mais tarde, Rui Bento. O cirurgião português guarda na memória esses tempos de pioneirismo, sem deixar de parte elementos pitorescos, como as roupas descontraídas de Barnard. Por Teresa Firmino

O nome do primeiro médico a fazer um transplante de coração entrou na história da medicina. Christiaan Barnard, cirurgião no Hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo (África do Sul), implantou, a 3 de Dezembro de 1967, o coração de uma mulher morta num acidente de viação, Denise Darvall, de 25 anos, num homem com problemas cardíacos incuráveis, Louis Washkansky, de 53 anos. O que é hoje menos conhecido é que um cirurgião português, Rui Bento, agora com 70 anos, entrou para a equipa de Barnard dois meses depois da operação histórica. Quando Rui Bento chegou ao Hospital Groote Schuur, a 2 de Fevereiro de 1968, Barnard já tinha ascendido a superstar. Menos de 24 horas após a transplantação, que ocupou uma equipa de 30 elementos e durou cinco horas, Barnard tornou-se uma celebridade mundial. "No sábado era um cirurgião entre outros na África do Sul, na segunda-feira era conhecido no mundo inteiro", gostava de dizer Barnard, que morreu em 2001, aos 78 anos, quando estava de férias em Chipre.
Barnard já tinha até feito a segunda transplantação de coração, no dentista Philip Blaiberg, quando Rui Bento começou a trabalhar na sua equipa como cirurgião contratado. Os corações transplantados em brancos eram de dadores brancos, para evitar conflitos raciais, numa África do Sul dominada pelo apartheid.

Um médico insatisfeito em LisboaMas, ao contrário de Washkansky, que só viveu duas semanas com o novo coração, Blaiberg aguentou-se 18 meses. "Ainda conheci o dr. Blaiberg. Pode não ter tido uma vida muito boa, mas estava vivo", conta ao PÚBLICO Rui Bento, aposentado do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, mas com consultório próprio.
Viviam-se tempos de pioneirismo, dos quais Rui Bento fez parte. "O ambiente era festivo. Havia visitantes - cirurgiões e cardiologistas - de todo o mundo. Até aí, ninguém conhecia Barnard, nem o Hospital Groote Schuur", recorda.
Não foi por se ter feito na África do Sul o primeiro transplante de coração que o cirurgião português quis ir para lá. "Estava a tentar há cerca de um ano. Já tinha sido contratado pelo hospital. Foi uma coincidência."
Mas foi a pensar em aprender cirurgia cardíaca que Rui Bento, na altura cirurgião geral do Hospital de São José, em Lisboa, com pouco mais de 30 anos, fez as malas. "Em Portugal não se faziam transplantes. E a cirurgia cardíaca era quase zero. Não estava satisfeito. Surgiu a oportunidade de ir para a África do Sul, para trabalhar com Barnard, e fui. Era para aprender cirurgia cardíaca." Ajudou a fazer muitos transplantes renais, e participou nalguns de coração. "Devem ter sido uns dez." Guarda várias recordações. De trabalhar imenso. E da transformação de Barnard devido às pressões da fama. Acusavam-no de se ter tornado vaidoso. Não era nada disso, diz Rui Bento. "Quando lá cheguei, vestia-se sem vaidade. Os sul-africanos não gostam de gravatas; gostam de se vestir para o ar livre. Depois do transplante, começou a andar bem vestido, porque passou a ser muito solicitado, sobretudo pela comunicação social."
Pela consideração que passou a ter, um estilista italiano, Angelo Litrico, ofereceu-lhe roupa ("começou a andar muito bem vestido"), e as gravatas passaram a fazer parte da indumentária. Na Alemanha, ofereceram-lhe um Mercedes ("quando lá cheguei tinha um Toyotazinho Corolla"). Uma aparência física excepcional e um sorriso faiscante ajudaram a cimentar a sua fama.
Acusavam-no de ser arrogante. Mas não era nada disso, diz Rui Bento. "Como se fez à sua custa, e como na cirurgia cardíaca não pode falhar nada, era de facto muito exigente. Se via falhas, desancava fosse em quem fosse. Fora do serviço, era normal. Muitas vezes convidava a equipa toda para festas na sua casa."
O coração era só uma bomba
Por ter sido pioneiro no transplante cardíaco despertou invejas, diz ainda. "Era um jovem cirurgião, de 40 e poucos anos, com renome internacional, inteligente e muito dedicado. Isso estimulava muitas invejas."
Barnard nasceu numa família pobre, em Beaufort West. O pai era pastor protestante. Subiu na vida graças ao seu esforço. Todos os dias andava a pé oito quilómetros para estudar na Universidade da Cidade do Cabo, recordava, na altura da sua morte, a BBC. Tornou-se médico de família, mas no final dos anos 50 foi para os EUA aprender cirurgia cardíaca. "Chegou a cortar relva e a vender jornais lá", lembra Rui Bento.
Em 1967, era um cirurgião cardiotorácico respeitado na África do Sul e já tinha feito muitas experiências em animais, como cães e babuínos. "Para mim, o coração sempre foi um órgão sem qualquer mística associada. É simplesmente uma bomba", dizia Barnard, citado pela BBC.
Mas o homem que transplantou o primeiro coração também arrasava corações. Casou três vezes, teve vários filhos. A sua última mulher, a ex-supermodelo Karin Setzkorn, tinha dois anos quando ele fez a primeira transplantação. Na autobiografia, One Life, Barnard não escondeu as suas conquistas. Por exemplo, dizia ter tido um caso com a actriz italiana Gina Lollobrigida e que a primeira mulher não suportava a celebridade dele. "Ficava cheia de suspeitas quando via a minha foto nos jornais com outras mulheres", dizia. "Sabe por que era playboy?", pergunta Rui Bento. "Porque as mulheres andavam atrás dele."

Imitadores tinham maus resultadosA operação de Barnard foi reproduzida em muitos países, conta Raymond Hoffenberg, médico no Groote Schuur nessa altura, num artigo na revista British Medical Journal de 2001: "Em 1968, tinham sido feitos 107 transplantes por 64 equipas de 24 países. Os resultados foram maus: as operações eram feitas por cirurgiões mal treinados, com baixa compatibilidade entre dadores e receptores, e fraco tratamento da rejeição."
Há quase 40 anos, os medicamentos para enfraquecer o sistema imunitário, os imunossupressores, para evitar a rejeição, estavam pouco avançados, e havia falta de experiência em humanos. O salto qualitativo só ocorreu nos anos 80, quando apareceu a ciclosporina, que reduziu bastante o risco de rejeição dos órgãos.
Rui Bento regressou a Portugal em 1970 e, como é normal, o contacto com Barnard perdeu-se um pouco. Mas cruzar-se-iam ainda algumas vezes: Barnard convidou-o para ir à África do Sul, e Bento convidou Barnard para vir a Portugal. Assim, o sul-africano veio cá em 1990 (por sinal, pela segunda vez). Deu palestras em Lisboa e Coimbra, como aliás fazia por todo o mundo. Já não operava desde 1983, porque ser cirurgião cardíaco é muito exigente e a artrite reumatóide afectava-lhe as mãos.

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