Bartoli, a magnífica

Não será exagero afirmar que o concerto de Cecilia Bartoli com a Orquestra Barroca de Friburgo era o mais aguardado desta temporada. Uma avalanche de público "invadiu" a Gulbenkian no sábado para ouvir um programa que retomou boa parte das árias de Haendel, Scarlatti e Caldara gravadas no seu mais recente CD: Opera Proibita. Ao contrário do que muitas vezes acontece, Bartoli ao vivo não defrauda (muito pelo contrário) as elevadas expectativas despertadas pelas gravações. O seu timbre (que no último disco se torna demasiado incisivo em várias passagens mais virtuosísticas) ganha um novo brilho e plasticidade (salientando-se a beleza do registo médio) e as passagens de coloratura, com longuíssimas frases repletas de sinuosas e rapidíssimas figurações, tornam ainda mais surpreendente a sua enorme capacidade respiratória. Verdadeiro "animal de palco", a cantora italiana possui um magnetismo que não deixa ninguém indiferente.Tal como no disco Bartoli alternou árias de bravura com árias cantabile e acrescentou três novos trechos da oratória Il Trionfo del Tempo e del Disinganno, de Handel. Uma das suas virtudes reside no facto de a pirotecnia vocal jamais ser gratuita, mas repleta de significado dramático. Nestas árias de oratórias compostas em Roma nos inícios do século XVIII (uma época em que a ópera era proibida pelo Vaticano) a imaginação dos compositores parece ter-se tornado ainda mais fervilhante dando origem a páginas com uma carga emocional intensa, decorrente de sentimentos contraditórios: o desejo e a culpa, o sofrimento e o êxtase, o ímpeto e a contenção... Era música que tinha também por função deslumbrar o público com virtuosismo dos castrati. A coordenação da agilidade vocal da cantora com a excelente Orquestra Barroca de Friburgo levou a que Bartoli assumisse também a direcção do agrupamento (que tocou sem maestro, coordenado pelo primeiro violino, tal como se fazia no barroco) através de indicações rítmicas e agógicas com a mão, os braços ou o balanço do corpo, às quais os instrumentistas respondiam quase ao milímetro. Uma situação inédita, mas que é também sinónimo de um trabalho de conjunto próximo da música de câmara (incluindo a fusão tímbrica da voz com os instrumentos) em detrimento da situação mais convencional da orquestra que acompanha o solista numa posição subalterna. Destacam-se também as intervenções solísticas do oboé, dos trompetes, do órgão ou da flauta de bisel sopranino no encore Che dolce simpatia, de Scarlatti.
Mas se as árias de bravura foram electrizantes (culminando em Dissertavi, o porte d"Averno, de Haendel, repetida como quarto encore), foi nas árias lentas que Bartoli provou que é uma artista tocada pelos Deuses. A sua maior profundidade musical conduziu-a a uma inspiradíssima exploração das nuances de cor, luz e sombra, da elegância de linhas e fraseados, dos pianíssimos mais aveludados e de uma gama de emoções musicais de tocante nobreza. Entre outros momentos destaca-se a sublime interpretação de Lascia la Spina, cogli la rosa, de Haendel (com a mesma melodia da conhecida ária Lascia ch"io pianga da ópera Rinaldo) que deixou a sala em suspenso e deu origem a um aplauso de vários minutos. Além dos encores já mencionados, Bartoli cantou ainda Ombra mai fu, de Bononcini (no qual Haendel se teria inspirado para a sua ária homónima) e La Tempesta da ópera Giulio Cesare, de Haendel.

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