Não é a religião Alexandra Lucas Coelho, gaza

Amani acordou com o telemóvel cheio de sms. Ouvir um CD de uma cantora decotada, 50 chicotadas. Não deixar crescer a barba, 80 chicotadas. Ter televisão por satélite, pena de morte. Anedotas de reacção rápida. A Palestina nunca será o Hamastão, inshallah. Amani é muçulmana como os católicos não-praticantes dizem se Deus quiser.Vive sozinha, frente ao mar de Gaza. Viaja sozinha, França, Holanda, Alemanha, a falar de água. Todo o bem escasso é político.
- Vale a pena fazer uma guerra pela água? Politicamente, sim.
Ontem, chegou a Erez, o checkpoint entre Gaza e Israel, a puxar a sua mala de rodinhas pela lama. Sobretudo com gola de pêlo, calças escuras, saltos altos, cara lavada, cabelo preto. Uma elegância com um nariz que já fez frente ao Hamas.
Foi numa câmara governada pelo movimento islâmico no Norte de Gaza. Amani preparara um projecto sobre recursos de água locais, financiado por uma ONG. A câmara só tinha a ganhar em o ler. Para a primeira reunião, Amani não cobriu o cabelo, mas pôs uma camisola comprida, e era Verão. A câmara recebeu o documento e não o leu. Na segunda reunião, foi de blusa de manga curta.
- Porque havia de lhes dar o que eles chamam respeito se não me estavam a respeitar?
Isto é o que ela conta enquanto espera no túnel, uma, duas, três horas.
Há um mês, as ordens eram berradas em altifalantes. Agora chegam por intercomunicadores à altura do ouvido. Avance. Páre. Tire o casaco. Rode as malas. Não. Para o outro lado. Não. Volte para trás. Tire o cinto. Tire os sapatos.
- O chão está molhado.
Amani tirou o cinto e entrou na máquina. Se não fosse de verdade era o Espaço 1999. Uma cápsula transparente com duas marcas amarelas no chão em forma de pés. Amani pôs os pés em cima das marcas e levantou os braços acima da cabeça, como mostra o desenho dentro da máquina. E então a cápsula rodou 360 graus em torno dela, com um zumbido.
Quando as portas se abriram, Amani era uma mulher interiormente verificada, do ponto de vista israelita.
Se fosse manhã cedo, o túnel estaria repleto de trabalhadores, palestinianos como ela, mas peritos em nada, que todos os dias se levantam ao começo da madrugada para passar a humilhação matinal de Erez, ir a Israel trabalhar, passar a humilhação vespertina de Erez, dormir duas ou três horas, e assim serem os afortunados que têm trabalho, enquanto os membros da Autoridade Palestiniana passam com o conforto dos VIP, ano após ano após ano, há 12 anos.
Amani nunca votaria Hamas. Mas sabe por que tanta gente votou Hamas. Não apenas em Gaza, Jenin ou Hebron. Mas em Jerusalém, Belém ou Ramallah, onde há tantas Amani.
O Hamas ceifou os votos da Fatah por toda a Palestina, homens sem barba, mulheres trabalhadoras, muçulmanos laicos, gente que não quer a sharia, que não espera um Estado islâmico. Gente exausta, entre a ocupação israelita e o abandono da Autoridade Palestiniana, perante a indecisa ambiguidade internacional. Não tiveram um Estado e tiveram o pior de um Estado, um aparelho ao serviço de si próprio, que foi adiando eleições.
- As pessoas não aguentavam mais a corrupção. Agora a Fatah que se arrume e o Hamas que mostre o que vale.
O código penal da anedota sms é o que ninguém imagina acontecer na Palestina. Foi da religião que o Hamas emergiu. Mas não foi a religião que o fez subir ao poder, democraticamente. E em democracia, tudo o que sobe pode cair.
O Hamas saberá como pode morrer do seu próprio remédio.

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