As raízes camponesas de Bartók no palco da Gulbenkian

"Porque é que Bartók admirava tanto a música dos camponeses húngaros? O que é que havia nesta música que o atraía como um íman?" Estas foram as perguntas que presidiram à concepção do invulgar concerto apresentado na quarta-feira na Gulbenkian. O prestigiado Quarteto Takács (fundado em Budapeste em 1975 e considerado uma das grandes referências da música de câmara erudita - na foto), o Ensemble Muzsikás (especialista na música tradicional húngara) e a cantora Márta Sebestyén uniram-se num programa sugerido pelo musicólogo Joseph Horowitz que pretende mostrar as ligações entre as composições de Bartók e a música das tradições rurais húngara e romena.Bartók passou muitos anos a fazer recolhas, dando a conhecer um universo bem diferente da música que no século XIX se associava à Hungria (as melodias e danças usadas por compositores como Liszt ou Brahms eram na realidade ciganas e representativas da música urbana). Através da citação directa ou recriando um "folclore" imaginário, a riqueza melódica, modal e rítmica da música dos camponeses húngaros foi o principal fermento da criatividade de Bartók, autor de um dos mais geniais legados musicais do século XX.
Fazer alternar a música tradicional com criações de Bartók como o Quarteto para Cordas n.º 4, alguns dos Duetos para Violino de 1931, a Sonatina (transcrita para cordas por Endre Gertler) ou as Danças Populares Romenas é uma ideia pertinente que proporcionou uma colaboração fecunda entre os brilhantes instrumentistas do Quarteto Tackás e do Muzsikás. As suas técnicas e sonoridades contrastantes, em vez de chocarem, antes se iluminaram mutuamente. Para além de clarificar o pensamento de Bartók, mesmo quando este é mais abstracto, a experiência foi também reveladora no domínio da interpretação e ilustrativa dos efeitos que o compositor pedia aos seus executantes.
Mas se o elevado nível do Quarteto Takács não é novidade para ninguém, a destreza técnica e entrega emocional do Muzsikás não lhe ficou atrás. Este segue o modelo dos grupos instrumentais das aldeias húngaras (que começam a ser objecto de revivalismo), constando de um quarteto de cordas formado por dois violinos, viola e contrabaixo, tendo os dois últimos apenas três cordas. A técnica é, porém, bastante diferente da dos instrumentos clássicos, assim como os recursos expressivos (usa-se, por exemplo, um trémulo mais largo em vez do clássico vibrato). O gardon (instrumento de percussão com cordas de formato semelhante ao violoncelo), o koboz (idêntico ao alaúde), a flauta longa (cuja técnica requer o sopro e o canto) ou o kaval (uma flauta que implica o recurso à técnica dos harmónicos) enriqueceram um conjunto de sonoridades fascinantes.
Surpreendente foi também a interpretação dos Duetos para Violino por um instrumentista de cada grupo ou as peças tocadas em conjunto, em que o som polido do Tackács e as sonoridades rugosas do Muzsikás se combinaram numa profusão de cores e palpitante energia rítmica.
Destaque-se também Márta Sebestyén, que, para além de recriar o canto tradicional, nos ofereceu uma curiosa imitação vocal da gaita-de-foles (um elemento caro ao imaginário de Bartók) e nos deleitou com a poética e melancólica Balada do Pastor Assassinado.

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