Dom Quixote: tema de variações

Foi de mãos azuis - amadíssimas mãos - que recebi o D. Quixote, juntamente com as Fábulas de La Fontaine e o Robinson Crusoë de Defoe. Julgo que os devi à minha veia poética, que já por essa altura cultivava, à D. Silvana e ao cravo de ouro que tão bem ela tangia

1.Previno já que o título desta crónica promete mais do que nela se achará. Fui apanhado em contramão, numa semana que se divide em dois. E escrevo enquanto me vem à imaginação a Terça da encruzilhada em que os cavaleiros andantes se põem a pensar que caminhos tomarão.Um pouco de cozinha interna, já que uma vez não são vezes e o leitor tem algum direito em participar da moléstia do escriba.
Quando estas crónicas passaram da sexta para o domingo, os meus hábitos de escrita não mudaram por aí além. A tolerância do PÚBLICO permitiu-me entregar os textos ao fim da tarde de quinta-feira e, como nunca fui de deixar para hoje o que posso fazer amanhã, era à quarta à noite que os escrevia. Altas horas, como é meu feitio. À mão, como é meu vício. Se nunca me dei com AZERTS ou HCESARS, muitíssimo menos cultivo qualquer relação com electrónicas. À quinta, cavaleiro da triste figura, abusava da bondade alheia. A minha prosa de cabo roto (ou seja, comendo sílabas ou cortando sílabas, em lição mal aprendida com Alfonso Alvarez de Soria) era entregue a femininas e habilidosíssimas mãos, que decifravam os rabiscos e os computorizavam. Ainda tinha direito ao bónus de uma cópia.
Mas essas mãos, aos sábados, tinham mais com que se ocupar. Daí que, ao tempo da mudança dominical, só tenha ganho um dia que, para não me habituarem mal, logo me cortaram. Assim, mantenho-me fiel às quartas. Quanto ao resto, é só mudar o tempo do verbo e onde empreguei o passado usar o presente.
Só que esta semana as coisas se complicaram. Quinta-feira é dia 8 e a Imaculada Conceição impõe a guarda às ditas mãos. Terça-feira é noite de Satyricon e não me perdoariam se o trocasse por Quixotes. Assim, só me restava este dia 5, segunda-feira, para crónica que sairá daqui a quase uma semana. Apanhado à má fila, não tive tempo para me preparar como devia. Mas a vida é como é, muito de sims e de nãos. Venha o tema que para variação já basta e para avariações também. Por mais habituado que esteja às minhas loucuras, o leitor deve estar a perguntar-se, com carradas de razão, que bicho me mordeu. O bicho foi Rocinante.

2. El Ingenioso Hidalgo D. Quijote de la Mancha foi dos primeiros livros que me vieram parar às mãos, tinha eu seis anos e usava calções louros. Engenhoso era palavra que ainda não devia conhecer ou confundiria com engenheiro que o meu Pai era. Fidalgos começaram a ir com a gente, nesse Verão de 41, que tantas mudanças nos trouxe à vida sem eu sequer me aperceber delas.Mas foi de mãos azuis - amadíssimas mãos - que recebi o D. Quixote, juntamente com as Fábulas de La Fontaine e o Robinson Crusoë de Defoe. Julgo que os devi à minha veia poética, que já por essa altura cultivava, à D. Silvana e ao cravo de ouro que tão bem ela tangia. Foi a seguir a um recital para os Duques de Montalvão ou para os Condes de Albergaria (mudo as terras mas os títulos valem) que as tais bronzinas mãos puseram nas minhas esses três volumes dedicados ao petit nom por que então era conhecido. Não direi que eu amava como se ama uma só vez na vida, mas andava lá perto.
Eram três livros encadernados, altos e esguios, com capas a cor. Lá por dentro, as célebres gravuras de Gustave Doré. Estranha coisa (penso eu agora) era virem escritos em francês, língua que ainda não falava. Mas ou mos traduziram ou pelas gravuras entrei nas histórias. E se La Fontaine (compilado) respeitava as fábulas originais mais célebres (embirro com a formiga desde então) o Quixote e o Robinson eram versões para crianças.
Hoje, acho que o Robinson e o Quixote são romances da mesma família. Na altura, o fidalgo da Mancha excitava-me muito mais do que o náufrago descobridor do Sexta-feira. Vezes sem conta pedi que me contassem a história dos moinhos, a dos encantos, a da famosa infanta Micomicoa, de Branca Lua e a dos odres de vinho tinto. Nomes que toda a vida tiveram, para mim, ressonâncias proustianas, sendo bem verdade que não há, ou não recordo, qualquer referência a Cervantes na Recherche. Mas teria sido possível essa Recherche sem a gesta do Quixote, trezentos anos antes? Tenho visto citada muita gente (de Fielding a Sterne, de Flaubert a Dostoievsky, de Joyce a Borges) como devedores do romance seminal. Proust nunca aparece na lista, mas, das bandas de Swann para as de Guermantes, também quixotescas foram as experiências e os encontros do pequeno e do grande Marcel.

3. Mesmo sem ir tão longe que vá buscar as origens do romance em Apuleio ou em Petrónio, é certo que a palavra, na história do Ocidente, está quase indissoluvelmente ligada ao tema do amor e da morte, ou da morte por amor, com expressão paradigmática no Tristão e Isolda. A insularidade do Quixote (e não estou a referir-me à famosa ínsula de Sancho Pança) é que o romance por excelência que ele é (na contracapa da tradução portuguesa de José Bento, reencontrei a magnifica frase de Kundera: "O romancista não tem contas a prestar a ninguém excepto a Cervantes") seja, como só os westerns de Hollywood muito depois dele seriam, uma história de dois homens. No caso, a relação Quixote-Pança. Não estou a puxar por qualquer interpretação homofílica do livro (que não tem faltado) mas a sublinhar a absoluta subordinação imaginária do mundo feminino ao mundo masculino do fidalgo da Mancha e do seu bom escudeiro. D. Quixote, mesmo no seu desvairo, ou por causa do seu desvairo, é um retrato arquetípico do Homem em todas as suas grandezas e vicissitudes, como retrato arquetípico Sancho por igual o é. Pelo contrário, as muitas personagens femininas do romance, culminando em Dulcineia, são todas figuras oníricas, transfiguradas de uma vulgar banalidade para a dimensão mítica que o protagonista lhes dá. Impossível ao leitor apaixonar-se por Dulcineia. Ou sai da visão de D. Quixote (isto é, sai do livro) e só lhe vê o lado pícaro, ou acompanha o êxtase dele, e não acha mulher mas mito. Tudo se torna ainda mais singular se convertermos Quixote e Sancho num só, verso e reverso de uma mesma realidade.
 No famoso prólogo da obra - esse que Cervantes diz ter-lhe custado mais a escrever do que o próprio romance - recorre o Autor a uma espécie de racourci da relação entre as suas duas personagens (se é que personagens são), estabelecendo um longo diálogo com um amigo que está para ele como o Sancho para o Quixote. É esse amigo, como será o escudeiro para o seu senhor, que enche o vazio do temor dele e transforma em claridade o caos da confusão. "Com grande silêncio estive a escutar o que o meu amigo me dizia, e de tal modo se imprimiram em mim as suas palavras que, sem as discutir, as aprovei por considerá-las boas e delas quis fazer este prólogo." E o livro, que começa com um diálogo de amigos, termina quando Sancho Pança, a chorar, lhe diz as linhas imortais:
"Não morra Vossa Mercê, meu Senhor, e siga o meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem menos, sem ninguém o matar, nem outras mãos que o acabem a não ser as da melancolia."
Está dita outra palavra-chave para a compreensão desta obra. O chamado monumento da literatura picaresca é a obra mais dominada pela acédia, único dos monstros ou dos inimigos que o fidalgo manchego não conseguiu vencer. D. Quixote sempre soube que o que outrora se foi jamais se voltará a ser, ou, nas suas próprias palavras, quando nos diz que já D. Quixote de la Mancha não é, "pues ya en los oidos de antaño no hay pájaros hogaño".
 Cervantes pode então concluir: "Só para mim nasceu D. Quixote e eu para ele; ele soube agir e eu escrever, os dois somos só um", "Madame Bovary c"est moi" nasceu aqui, o que permite ao D. Quixote  ser tanto uma autobiografia como uma visão, a obra em que o realismo e o onirismo mais fundamente se confundiram.
 
4. Algum leitor terá reparado que, das várias citações que fiz, só uma deixei no castelhano original, bem sabendo que a palavra "hogaño" é de difícil compreensão.
 Mas o D. Quixote, de que uma das primeiras edições (em 1607) saiu em Lisboa (aliás duas, e só da primeira parte, que a segunda só surgiu em 1615), foi bastas vezes traduzido para português. Em tempos, li-o na versão de Aquilino, em que este não resistiu a sobrepor-se a Cervantes. Agora, duas novas edições estão disponíveis. Não li ainda a de Miguel Serras Pereira, mas, desde o Verão, não largo a de José Bento (ed. Relógio d"Água) que me parece inultrapassável e respondeu a muitas das dúvidas que o velho livro de bolso da Coleccion Austral sempre me deixou.
 José Bento, que já lograra o milagre, nas suas várias antologias da poesia espanhola, de metamorfosear uma língua noutra (talvez o empreendimento literário de mais difícil consecução) re-escreveu o Quixote em português numa tradução deveras pasmosa.
 Ela me guiou nesta crónica (todas as citações são buscadas aí). Não é culpa dele que me tenha metido pelo meio em variações, que, mesmo quando parecem extravasar do tema original, dele são devedoras.
 Quem duvide vá até ao livro e ao título do capítulo XXIV: "Onde se contam mil frioleiras tão impertinentes como necessárias ao verdadeiro entendimento desta grande história." Qual história? A história das minhas frioleiras? Ou a da jornada que fiz com Vossa Mercê, Senhor D. Quixote de La Mancha, e que, pareça embora disparatadíssima, dou "por bem empregadíssima". Escritor

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