Trovas de D. Dinis em livro com "palavras e música"

Poesia do rei trovador é publicada pela primeira vez com música, 15 anos depois de um achado precioso na Torre do Tombo

Em Julho de 1990, o norte-americano Harvey Sharrer, professor da Universidade da Califórnia, encontrou na Torre do Tombo uma folha de um cancioneiro perdido entre registos de cartórios do século XVI. Mal identificou o conteúdo do pergaminho de cerca de 1300 - sete canções trovadorescas de D. Dinis, com as respectivas notações musicais -, Sharrer, especialista em literatura medieval, apercebeu-se da importância do documento e resolveu estudá-lo. Para isso convidou Manuel Pedro Ferreira, professor da Universidade Nova, especialista em música da Idade Média e crítico do PÚBLICO.
Quinze anos depois, Manuel Pedro Ferreira edita o estudo musicológico do Pergaminho Sharrer, que guarda um conjunto de trovas de D. Dinis e é "o mais antigo documento conhecido com música profana de origem portuguesa", explica. Cantus coronatus: 7 Cantigas d"El Rei Dom Dinis, a lançar hoje, às 18h, na Livraria Almedina, em Lisboa, é uma edição bilingue (português-inglês) que inclui capítulos de contextualização histórica, com destaque para a figura do rei (ver caixa) e para os géneros poéticos da tradição trovadoresca galego-portuguesa; uma análise das cantigas de D. Dinis com as notações musicais (transcrição paleográfica); e a edição das sete trovas, em que o autor preenche as lacunas, devidamente assinaladas, com base em repetições ou por referência a canções conhecidas do mesmo período.
"Infelizmente, por vicissitudes várias, não pude contar com os capítulos do professor Sharrer, que seriam importantíssimos para dar mais relevo histórico ao documento", explica o autor, referindo-se ao "restauro desastroso" do pergaminho na Torre do Tombo (TT) e aos sucessivos atrasos que acabaram por impedir a publicação da obra em 1995.
"Na intervenção feita na Torre do Tombo foram cometidos erros gravíssimos que chegaram mesmo a apagar notas", explica, garantindo que, caso Sharrer não o tivesse levado ao Instituto José de Figueiredo para ser fotografado antes do restauro na TT, muita da informação estaria hoje irremediavelmente perdida. Segundo o autor, o fragmento com cerca de 30 centímetros de altura - o cancioneiro teria 40 centímetros - foi sujeito a um banho químico e depois prensado. "Como se não bastasse, o técnico, desconhecendo o que tínhamos publicado sobre o fólio em 1991 e a sua importância histórica, ainda recorreu à borracha electrónica, apagando notas."

Poesia para cantarApesar do restauro, o pergaminho continua a ser "fundamental" para a música ibérica da Idade Média porque nele estão registadas as mais antigas cantigas de origem portuguesa, as únicas de D. Dinis com notações musicais. "Além disso são as únicas cantigas d"amor que aparecem com melodia. Temos palavras e música num documento contemporâneo do rei", acrescenta, lembrando que os poemas já eram conhecidos, mas a partir de cópias italianas do século XVI.
"Aqui vemos as canções tal como eram - um objecto único que junta os poemas à melodia." Ao contrário do que já foi defendido, a palavra não é autónoma. "Esta poesia não era declamada, mas cantada. É a música, aguilhão emocional e afectivo, que faz penetrar o sentido das palavras."
A obra agora publicada também questiona o modelo da cantiga d"amor galego-portuguesa de João de Freitas Branco, segundo o qual a arte dos trovadores da península era mais simples do que a praticada além-Pirenéus. "Freitas Branco caracteriza-a sem dados musicais. Agora podemos dizer que as trovas galego-portuguesas são riquíssimas e nada devem em complexidade às que se faziam para além dos Pirenéus." Longe de estarem submetidas aos modelos eclesiásticos, como diz Freitas Branco, partem de uma tradição secular, com alguma influência francesa.
Para Manuel Pedro Ferreira, são instrumentos de afirmação cultural da nobreza e provam que com D. Dinis se atinge o "cume da produção galego-portuguesa". E o rei, cantava ou tocava? "Não sabemos se cantava. Podia mesmo fazê-lo por entreposta pessoa, como no Sul de França, em que os trovadores tinham ao seu serviço um cantador. Mas muito provavelmente é ele que dirige, é ele que ensina." D. Dinis seria capaz de inventar ou elaborar - "era considerado indigno que o trovador não fosse capaz de criar também as melodias" -, mas era provavelmente incapaz de escrever música, conclui Manuel Pedro Ferreira.

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