Lugares da noite

Averdade é que a noite das cidades muda e nós sentimos a nostalgia do que foram as noites da nossa juventude. Pertenci a uma geração que se centrou magicamente num lugar do Bairro Alto que se chamava (e julgo que ainda chama, mas nunca mais lá fui) o Frágil. Tinha as suas personagens míticas: a Guida da Abraço, que se encontrava à entrada, a Ana Mar, o Manuel Reis, anfitrião último, e nós, isto é, todos aqueles que, de um modo ou de outro, justificaram figurar num livro de fotografias de Mário Cabrita Gil intitulado A Idade da Prata. Alguns, talvez movidos por certos textos meus ligados à actualidade internacional, achavam que éramos todos "pós-modernos" - designação que se banalizou e ao mesmo se descaracterizou um pouco. Passávamos noites de encantamento, entre bebidas e pessoas. Alguns, no outro lado da sala, dançavam. Mas lembro-me de estar com o Alexandre Melo, a Tereza Coelho, o Pedro Cabrita Reis, o João Pinharanda, a Paula Guedes, o André Gomes, o Augusto M. Seabra, o Al Berto, etc. A lista não teria fim. Consegui arrastar até lá o Eduardo Lourenço num daquelas noites em que o ruído perturbava a comunicação, e suponho que ele saiu dali meio atordoado, mas contente por ter mais material para reflectir sobre a evolução do mundo.Em redor, havia diversos restaurantes que se foram tornando locais de peregrinação: desde o Casanostra até ao Pap"açorda. Não havia o movimento que hoje se encontra em Santa Catarina e pela Bica fora. As ruas ainda não eram ocupadas com jovens sentados pelos degraus a beber cerveja. Mas, às vezes, descia-se até ao Conde Barão para as então famosas Noites Longas. Fluxos de gente que desciam e subiam escadas, que às vezes ceavam, que dançavam, e que namoravam com aquela liberdade de gestos e afectos que hoje se vulgarizou sem que por isso ganhasse mais encanto.
O local das Noites Longas transformou-se no B.Leza, onde há tempos até assisti ao lançamento de um livro ou número de revista, já nem sei bem. Percebi que tinha passado a fazer parte dessa Lisboa na Cidade Negra, que Jean-Yves Loude ficcionou num livro excelente lançado pelas Publicações Dom Quixote. Mas que era um belíssimo local de convívio, encontro e fascínio de todas as etnias. Ora o B. Leza está ameaçado de desaparecer. O David Ferreira enviou-me um mail chamando a atenção para a necessidade de o defendermos ou criarmos alternativas - movimento que compartilho por inteiro. Tal como o Bairro Alto tinha uma das mais atraentes livrarias de Lisboa, com uma excelente programação cultural, e um fundo editorial impressionante, a Ler Devagar. Também está em risco. Não sei bem o que sucede com ela neste momento. Penso que tem o seu destino associado a uma outra magnífica iniciativa, o bar de livros de filosofia e teatro que Nuno Nabais concebeu e que tinha o nome de O Eterno Retorno. A noite de Lisboa precisa de lugares como estes. O Bairro Alto transforma-se se eles continuarem a existir, Atenção Câmara Municipal de Lisboa! Atenção, Ministério da Cultura! Professor universitário

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