A ditadura da maioria compacta

Quase cem anos depois da morte de Ibsen (1828-1906), o esteio da sua obra ainda permite que os criadores teatrais interpelem a sociedade. Desta vez, a obra original Um Inimigo do Povo (1882) foi cortada e adaptada ao grupo Visões Úteis. Estreado em 2004, O Inimigo mantém um admirável sentido de urgência. Algumas das falas lembram as fórmulas gastas dos protagonistas políticos de noticiário e as personagens soam terrivelmente familiares. Do mesmo modo que a água das termas locais, fonte de prosperidade, está inquinada, também os pilares da sociedade democrática estarão podres. Num cenário de envenenamento e de "pântano", a "maioria compacta" é manipulada pelos "lobos", no caso o director do jornal, a presidente da associação de pequenos comerciantes, a presidente da câmara e os sempre ausentes accionistas das termas. A Imprensa, o Comércio e o Estado promovem a noção de interesse da opinião pública para melhor salvaguardarem os próprios interesses. A peça explora o desvirtuamento de uma das ideias da democracia: a maioria é quem dita as decisões. Contra esse desvirtuamento, o espectáculo faz uma apologia da responsabilidade individual e da independência de pensamento, bem como do papel das vanguardas no seio das democracias, em contraste com o papel dos lobos (e dos cordeiros, de pensamento vulgar, sacudindo os ombros e a água do capote). Por contraponto à imprensa, a arte do teatro parece poder assumir-se como um lugar de crítica social. Porém, no espectáculo como na peça, até o bom da fita sai penalizado: a cegueira do protagonista, intransigente em questões de princípio e absolutamente convicto da sua razão, não contribui para a defesa do ponto de vista que proclama. Começando cheio de boas intenções, no final fica isolado. Talvez por isso o tom geral seja farsesco e os dramas pessoais não tenham o peso que se imaginaria à partida. Os dilemas e conflitos internos não são usados para dar profundidade às personagens, e o monólogo interior quebra quando os actores não têm falas. As personagens são construídas a partir de fora, resultando emocionalmente ligeiras e estereotipadas. Sendo assim, o carácter de invectiva política do espectáculo prevalece sobre o drama por si só. Mas, por outro lado, a caricatura da gestualidade sinistra de cada uma destas personagens nem sempre é desenvolvida e a poderosa arma de crítica social que a performance teatral tem - o retrato sofisticado dos tiques que revelam o embuste - também fica às vezes por usar.

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