The Ister Danúbio, um problema ético

A viagem de 3000 km está quase a terminar. Antes já tinham sido escutados três filósofos centrais do pensamento contemporâneo, os franceses Bernard Stiegler, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe. É a vez de o cineasta alemão Hans-Jürgen Syberberg tomar a palavra no longo documentário (189 minutos) The Ister (2004). E ouvimos da sua boca que os rios, hoje - neste caso particular, o Danúbio -, já não são um assunto para os artistas: "Nem numa imagem, nem num poema, nada. É só sujidade. Só se pode chorar."Programado por Augusto M. Seabra para a secção Histórias da Europa: Nacionalismos, Identidades e Fronteiras, do DocLisboa, o filme (11, Pequeno Auditório), assinado pelos australianos David Barinson e Daniel Ross, constitui um dos acontecimentos cinematográficos do ano. Ao longo do percurso, o espectador é guiado através de uma série de problemáticas que têm afectado a Mittleuropa nos últimos 60 anos, décadas marcadas por duas guerras. Os temas do documentário, dizem-nos os realizadores, abrangem questões que passam pela "tecnologia, mortalidade, política, guerra e poesia".
O ponto de partida do filme é um seminário do filósofo alemão Martin Heidegger centrado no poema O Istro, de Hölderlin, que teve lugar, em 1942, na Universidade de Friburgo, na Alemanha, no momento em que os nazis lançavam a Solução Final.
A desmontagem do pensamento do autor de O Ser e o Tempo (1927) é uma das linhas centrais deste trabalho. Numa passagem, enquanto a viagem se aproxima do campo de concentração de Mauthausen, a 730 km da nascente do Danúbio, Philippe Lacoue-Labarthe sublinha que Heidegger é merecedor da sua suspeita por ter deixado de evocar apenas a linguagem para passar a tratar a realidade: "Não se pode reduzir a exterminação dos judeus à industrialização da agricultura."
O filósofo francês recorda ainda que Heidegger não quis escutar a história dos judeus na Europa. Trata-se aqui de um problema ético: "Infelizmente não é caso único; para ele, esta história não faz história." Antes, durante o trajecto entre Novi Sad e Vukovar, Bernard Stiegler explicava a necessidade de se voltar à mitologia trágica dos Gregos para se tentar perceber a questão da técnica, tal como ela se coloca ao homem do século XXI. E dá os exemplos de Prometeu e de Epimeteu, tal como são narrados por Platão através da boca de Protágoras: "Assim, Prometeu vai roubar o fogo, em outras palavras, a técnica, e também a inteligência de Atena. E o homem será um ser vivo mortal condenado a fabricar próteses. Por outras palavras, ele não tem qualidades..."
A longa viagem, através de vários países, termina com a voz de Heidegger a ler O Istro. Tudo se tinha iniciado há 3000 km, na Roménia, no delta do mar Negro, na Roménia, onde o Danúbio desagua. Na capital, Bucareste, festejava-se a entrada na NATO. George Bush surge num ecrã e os habitantes dançam nas ruas... O.F.

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