Yom Kippur 5766

Para os judeus é o dia puro, o dia branco, o dia que decide o destino. Não há carros. As ruas são tomadas por bicicletas e triciclos. Todo o país pára. Em Jerusalém, o sol brilhou todo o dia e a noite chega sem uma brisa. Às 17h46, o som das trombetas de chifres de carneiro marca o fim do Yom Kippur .
Por Alexandra Lucas Coelho, em Jerusalém

É o fim do dia mais sagrado no lugar mais sagrado. Diante do Muro das Lamentações, em Jerusalém, milhares de judeus oram em crescendo. Quase todos vestidos de branco, quase todos de sapatos de pano, chinelas, meias ou até descalços. Pede a tradição que a cor seja a mais pura e não se use couro.Os homens ao longo de quase todo o muro, com grandes xailes de pano cobrindo os fatos e a cabeça. As mulheres no pequeno espaço que lhes é destinado à direita, com longas saias e lenços. Muitas crianças entre os dois lados, muitos carrinhos de bebé entre as mães.
Os rolos da Tora estão abertos. O sol desceu. A lua subiu. Não sopra uma brisa. E então, soprados de várias bocas, em lugares diferentes da praça, soam os três sons do Shofar, a trombeta de chifre de carneiro que assinala o fecho do Yom Kippur.
Foi um carneiro que Abraão sacrificou em vez do filho Isaac, e o Shofar simboliza essa herança bíblica, através de um som longo e contínuo, de um som tripartido, e de um som partido em nove.
O Dia do Perdão, o Shabat dos Shabat, aquele em que os judeus inscrevem o seu destino nas mãos de Deus, terminava assim às 17h46, após 25 horas de jejum e oração, durante as quais Israel parou - carros, autocarros, comboios, aviões, rádio, televisão, comércio, serviços.
Extinto o som do último Shofar, há um clamor e a massa de gente voltada para o muro começa a desfazer-se. Os que ali rezaram a última oração vão quebrar o jejum.
E cruzam-se com os que agora chegam, homens ultra-ortodoxos que vêm abraçados como um coro alentejano de centenas, cantando a plenos pulmões, em direcção ao muro.
Além da paisagem branca dominada pelos ortodoxos há centenas de judeus seculares pela praça, grupos de jovens com roupas coloridas e jeans sentados no chão, senhoras de idade sentadas em cadeiras de plástico, pares de namorados a passear de mãos dadas, amigos longamente abraçados em silêncio, na emoção do Kippur, dia limpo, dia de começar. Além do hebraico, ouve-se francês, russo, inglês da América, português do Brasil, o doce espanhol da Argentina.
E à saída da Cidade Velha os semáforos já estão todos a funcionar, e já se precipitam engarrafamentos de autocarros e automóveis, como se todo o movimento estivesse suspenso, só à espera das trombetas bíblicas.

Bicicletas e trotinetassob um sol ardente
Desde manhã cedo, Jerusalém Ocidental era o grande silêncio. Rua a rua, a caminho do centro, todos os semáforos apagados, todas as lojas fechadas. Um carro da polícia em ronda aqui e ali, e de resto o asfalto era da gente a pé, das bicicletas, das trotinetas, dos skates e dos triciclos.
Em Mea Sharim, o bairro ultra-ortodoxo mais célebre da cidade, um grupo de crianças tinha trazido cadeiras para o meio da estrada. Os rapazinhos de coletes pretos, camisa branca, kipah de veludo na cabeça. As meninas com os seus vestidos demasiado largos de senhorinhas antigas em dia de festa, cetins, veludos, fitas. A saltarem à corda onde costuma estar tudo a buzinar. A correrem de um lado para o outro nas passadeiras. A passearem os carrinhos de bebés dos irmãos mais novos. A pedalarem furiosamente triciclos com os canudos a balouçar de cada lado das orelhas.
Estava um sol ardente como há semanas Jerusalém não tinha. E nem um braço, nem um tornozelo à mostra. As mães de collants de lã branca e ténis brancos. As avós de aventais brancos rendados e a Tora debaixo do braço. Os homens de raízes eslavas com os seus gigantescos barretes de pêlo, os seus casacos de seda, e de ténis brancos.

"Este dia lembra-meque acredito em Deus"
Subindo até à Rua Jaffa, o coração comercial da Jerusalém judaica, todo o som é o deslizar de bicicletas. Judeus seculares de calções e capacete. Como Yoel, 41 anos, e Marie, 8 anos, mãe e filha, que já andaram oito quilómetros desde casa e quase iam contra a paragem de autocarro na Rua King George. É o primeiro Yom Kippur em que andam de bicicleta.
"Para mim, este é o dia em que os judeus se unem", diz Yoel, que trabalha num consultório dentário. "É uma oportunidade de jejuarmos, rezarmos e estarmos juntos." Ela, que está longe de ser uma ortodoxa, com os seus calções de lycra justos e as suas peúgas rosa-choque, não come desde o início do Yom Kippur, na véspera, às 16h35. "Eu e o meu marido jejuamos, as crianças é que não." Assim pede a tradição, que as crianças, os doentes e as grávidas não jejuem. "Às quatro da tarde vamos para a sinagoga rezar e depois quebramos o jejum juntos."
Adiante, descendo em direcção à Rua King David, já com a Cidade Velha à vista, um bando de jovens coloridos. São judeus americanos a estudar hebraico e História de Israel por quatro meses. Estão a viver o seu Kippur na cidade santa.
"Este dia lembra-me que acredito em Deus", diz Kara, 16 anos, sardas e uma saia cor-de-rosa até aos pés. "Sinto-me mais perto de tentar ser melhor, de me purificar, e isso é uma coisa fantástica!" Mike, 17 anos, que usa uma minúscula kipah e jeans, vê o Kippur como uma transição. "Limpamos tudo o que fizemos mal no ano anterior. O jejum simboliza isso, estamos a limpar o nosso corpo."
Estão todos a jejuar. Uns bebem água, outros nem isso. Marc acha que é opcional: "Há pessoas que lavam os dentes, outras que não deixam uma gota de água tocar na boca."
O israelita que os acompanha, Baruch, 58 anos, professor de uma escola perto de Telavive, judeu reformista, fala no caminho para o Kippur, que se inicia dez dias antes, no dia de Ano Novo judaico. "No Rosh Hashanah, o Livro do que somos é aberto e no Yom Kippur é fechado. Até ao Yom Kippur é uma meditação em crescendo."
Já caminharam quilómetros. E vão continuar até ao pôr do sol.

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