50 Cent consagra hip-hop em Portugal

Foi a primeira vez que uma estrela planetária do rap americano, 50 Cent, actuou em Portugal. O concerto foi apenas razoável, mas fez-se história. A cultura hip-hop saiu consagrada, com um Pavilhão Atlântico repleto de gente de todas as idades e camadas sociais

É sábado, são quase 21h, e carros munidos de potentes aparelhagens passam junto ao Centro Comercial Vasco da Gama, Parque das Nações, em Lisboa, difundindo uma música de sons graves. Nas imediações do Pavilhão Atlântico há muitos polícias, como é raro ver em espectáculos em Portugal. As filas para entrar prolongam-se até se perderem de vista. Para ver 50 Cent, a primeira estrela planetária do rap americano a visitar Portugal, há gente de todas as idades e camadas sociais. Há pais com filhos ainda crianças. Grupos de adolescentes de raparigas e rapazes. Gente mais velha que viveu o fenómeno nas últimas décadas e quer vê-lo num palco de massas. Há o radialista José Mariño, um dos responsáveis pela difusão do género; Pedro Abrunhosa, conotado com ele no princípio da carreira, ou os Da Weasel, maior caso de popularidade nos últimos tempos. Há negros e brancos. Talvez mais brancos.
Quase ausente parece ter estado a comunidade hip-hop portuguesa mais militante, provando que, apesar da tentação de se falar do hip-hop como um todo possuído por uma lógica coerente, possui contradições internas. Nem toda a gente se revê na música de 50 Cent, nem no imaginário que expõe.
Durante a semana circularam rumores de que a ocasião poderia servir para desencadear desacatos. Mas a única violência foi estar numa fila que parecia não ter fim. A primeira parte, a cargo de Boss AC, estava marcada para as 21h, e 50 Cent para as 22h. O primeiro começou uma hora depois e o segundo hora e meia mais tarde. Apesar das falhas, as consciências podem estar tranquilas: ninguém se queixou e a atmosfera foi exemplar.

Um momento simbólicoO concerto de 50 Cent não foi apenas um concerto. Foi um desses momentos simbólicos que confirmam algo que, subliminarmente, já se sabia. A saber: apesar de todos os equívocos a que ainda é votado, existe uma maior integração do fenómeno do hip-hop no tecido da sociedade portuguesa, fazendo com que o público seja mais numeroso e heterogéneo (ver comentário ao lado).
Desse ponto de vista, foi uma celebração: adolescentes e menos jovens mimetizando a linguagem gestual, com as mãos em acção e o bambolear compassado do tronco, gritando palavras de ordem ou mostrando saber letras de cor, como aconteceu no concerto de Boss AC, onde canções como Hip-hop (sou eu és tu) ou Baza baza, foram cantadas em coro. "Este é um dia para ficar na história", lançou, consciente da importância daquele momento, para quem tenta impor a sua música há mais de uma década. Acompanhado por músicos e por Guto, na voz, colocou o pavilhão em delírio, com cadências hip-hop insinuantes, repletas de "boas vibrações", como não se cansou de gritar.
Às 23h30, entra em acção 50 Cent. Nos ecrãs desfila a história de Curtis Jackson, o seu nome, o ex-delinquente perdido na rua e sobrevivente, milagroso, de nove tiros disparados à queima-roupa. Quando o musculoso rapper entra em acção, é o delírio. O dispositivo em palco é clássico, dentro dos parâmetros do hip-hop: um DJ e uma série de MC (cantores, declamadores) que alternam ao longo de hora e meia, como Young Buck, Lloyd Banks, Mobb Deep, M.O.P. e uma mulher, Olívia.
Oferecem um espectáculo dinâmico, com a maior parte dos temas a conhecerem um fim abrupto, sublinhados pela reprodução sonora de disparos de pistola. Há referências a Snoop Dogg e é interpretado o estupendo Drop it like it"s hot, no meio de uma ode à marijuana. Nos ecrãs passam imagens libidinosas de mulheres, metralhadoras, carros. O efeito de repetição e o glamour de banda desenhada com que são apresentadas desvanece a aura de provocação, mas há olhares de pais, reprovadores. Para os filhos, deve ser mais um jogo-vídeo.
Do palco sucedem-se os pedidos de participação popular ("façam barulho", "ponham as mãos no ar" ou "gritem G Unit", numa alusão ao colectivo de 50 Cent, são frases constantes), e da plateia e do balcão a reacção é imediata. As letras contêm metáforas muito simples, falam de mulheres, conflitos, dinheiro e sucesso, mas ninguém lhes liga, perdidos na festa do ritmo.
Em disco, a música de 50 Cent vive da qualidade de produção enxuta e austera, de Dr. Dre. No Atlântico, essas propriedades diluíram-se, o som saturado quase nunca deixou perceber as subtilezas, numa amálgama algo dissonante, com os temas a surgirem abafados pelo entusiasmo do público, como viria a acontecer na interpretação de In da club ou Candy shop.
Nesse sentido, esteve longe de ser um concerto memorável. Foi apenas um espectáculo eficaz, principalmente quando foram apresentados temas como Hate it or love it ou P.I.M.P, com 50 Cent a surgir, impecavelmente, de fato e chapéu brancos. Mas foi uma noite de consagração para o hip-hop em Portugal.

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