Torne-se perito

Um TÚnel e Uma ponte, DUAS obras para a histÓria

A inauguração da Linha Amarela confirma o fim de um mito: afinal, é possível construir túneis nas entranhas graníticas do Porto. E alterar o significado de um dos ícones
da cidade, a Ponte de D. Luís, que hoje recebe o metro depois de ter sido cruzada por animais, pelo "americano" e pelo automóvel. Por Abel Coentrão e Andréia Azevedo Soares

O mito da dificuldade de intervenção no subsolo do Porto já tinha caído por terra quando a tuneladora "Micas" perfurou o túnel de Campanhã da Linha Azul. Mas nem por isso os dois troços do túnel Salgueiros-Avenida da Ponte deixam de ser obras de engenharia emblemáticas, partes de um canal parcialmente construído em pleno centro histórico que desemboca na centenária Ponte de D. Luís I, cuja reabilitação fica também como marca da primeira fase desta rede de metro. Uma tarefa imponente que a SIC, tal como já tinha feito com o trabalho da tuneladora, decidiu registar para a posteridade num documentário que durante este fim-de-semana será exibido por aquela estação televisiva.

A ponte adaptadaNão se sabe para quantos anos desenhou Teophile Seyrig, nos idos de 1880, a Ponte de D. Luís I. Mas, a um mês de completar 119 anos, a dupla travessia em ferro sobre o Douro está como nova. E com uma nova função: no tabuleiro superior, os carros, que tinham sucedido às carroças de bois, aos "americanos" e aos antigos eléctricos, deram lugar ao metro.
Foram precisos quase dois anos e o esforço de 250 homens para operar a revolução. Durante a maior parte deste tempo, 1450 toneladas de andaimes ocultaram da vista as mudanças que se foram operando. E não foram poucas. Se, na véspera do início das obras, o PÚBLICO dava conta de que seria necessário substituir parte da estrutura metálica, nem os engenheiros da Metro, com Vítor Silva à cabeça, imaginavam que seria necessário substituir mil das 1600 toneladas de aço da D. Luís I.
O desgaste do tempo e do peso, a água e, imagine-se, os pombos, transformaram esta obra numa " caixinha de surpresas", como descreve Vítor Silva. Nada de impossível para a equipa da Soares da Costa, que, além de construir um novo tabuleiro, 1,70 metros mais largo do que o anterior, substituiu milhares de rebites, vigas, carlingas, consolas, longarinas, contraventos, cornijas e guarda-corpos. Resultado: quem hoje olhar para a Ponte de D. Luís I, onde alguns andaimes no tabuleiro inferior ainda recordam a intervenção, não conseguirá dizer, sem olhar para a placa aposta no pilar norte, que ela foi inaugurada no aniversário do rei, nesse longínquo ano de 1886.

O túnel em plena Baixa Após o sobressalto do acidente em Campanhã, que provocou uma morte em 2001, a empreitada do túnel em direcção à Trindade enfrentou o seu momento mais decisivo: esventrar o solo do centro da cidade, sobre o qual há construções tão numerosas quanto antigas.
Passados mais de quatro anos, era difícil não encontrar orgulho naqueles que estavam a ultimar o projecto. Afinal, aquela que era considerada uma das partes mais complexas do processo - a estação de Faria Guimarães - estava ultimada. Foi ali que encontrámos, no passado dia 23 de Junho, os últimos trabalhos subterrâneos. A cidade preparava-se para as comemorações da festa de São João, mas a laboração era contínua.
Descemos pelo poço da Rua de Fonseca Cardoso, onde parte do túnel estava a ser suportada por um arco repleto de reentrâncias. Uma máquina, chamada jet-grouting, jorrava cimento líquido em grande pressão contra os tais furos. Assim, a argamassa misturava-se ao terreno e, dois dias depois, conseguir-se-ia a robustez necessária para avançar sob o tecido urbano da Baixa. À esquerda da escada de trabalho, havia ainda uma imagem de Santa Bárbara, uma "superstição contra aluimentos que ainda resiste", explica o engenheiro céptico José Carlos Farinha.
Caminhámos depois em direcção à Trindade. Os trilhos sucediam-se uns aos outros, mas não havia metro neste túnel, era basicamente um caminho fantasma, mal iluminado ao fundo, onde a temperatura assumia valores significativamente mais baixos do que aquele com que São Pedro brindou os festejos do seu colega, São João. "Penso que estamos à volta de 15 graus", arrisca Paulo Ferreira, responsável pela construção dos túneis.
O mundo que germinou sob os nossos pés nos últimos três anos estava, neste momento, longe de se assemelhar a uma caverna húmida repleta de mineiros. À esquerda da escada que dava acesso ao piso -2, azulejos cinza - o tom claro escolhido pelo arquitecto Eduardo Souto Moura - forravam as superfícies verticais. E, do arsenal de máquinas e equipamentos, o que se encontrava ali não espantava pela quantidade nem pelo volume. À excepção das dezenas de baldes de gesso empilhados num canto, entregues à penumbra, o espaço seria quase asséptico. Homens sobre andaimes montavam agora os tectos falsos. Um desses que agora, para o leitor que segura estas páginas, não é mais do que o prenúncio de 17 de Setembro de 2005, o dia em o metro atravessa sem ser visto o coração da Baixa, transpõe o Douro e chega a Vila Nova de Gaia.

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