"Em democracia não há inocentes"

No seguimento dos atentados de Londres, o primeiro-ministro Tony Blair decidiu criar um grupo de trabalho cuja missão é sugerir formas de impedir os jovens muçulmanos de Inglaterra de resvalar para o extremismo. Esse grupo de trabalho entrou em funções na passada semana e é constituído por 13 conselheiros, universitários e representantes comunitários muçulmanos entre os quais consta, como já aqui foi noticiado, Tariq Ramadan, persona non grata nos Estados Unidos e em França, em 1995, devido às posições ambíguas sobre o lugar da religião muçulmana, o homem que o antigo ministro francês Bernard Kouchner apelidou em 2003 de "crápula intelectual", no seguimento de uma polémica lançada por Ramadan contra os intelectuais judeus franceses. A preocupação de Tony Blair é compreensível, mas suspeito que este grupo de trabalho lhe trará mais problemas do que soluções, correndo o risco de se transformar num instrumento ao serviço de interesses comunitários. Com efeito, como primeira medida, o grupo de trabalho acaba de propor a substituição da jornada dedicada à memória do Holocausto (Holocaust Memorial Day) por uma jornada dedicada aos genocídios (Genocide Day), incluindo as vítimas muçulmanas de Gaza e da Cisjordânia, assim como as da Tchechénia e da Bósnia. A especificação do Holocausto pareceria "demasiado exclusiva a numerosos jovens muçulmanos", "indicando que certos [genocídios] deveriam ser mais comemorados do que outros, ofensa que poderia ser explorada pelos extremistas", segundo um dos conselheiros. Como seria de esperar, Tony Blair recusou a proposta, o que, segundo o Telegraph, não impediu Ahmad Thompson, advogado muçulmano que integra o grupo dos conselheiros, de qualificar o Holocausto de "grande mentira" e de afirmar que o primeiro-ministro teria decidido ir fazer a guerra ao Iraque sob a influência "sinistra" de judeus e mações.
Aparentemente inofensiva, esta proposta visa um dos aspectos fundamentais da identidade europeia que é a sua memória. De facto, no dia em que a Europa abdicar da sua memória própria - quer seja em nome do multiculturalismo, do interculturalismo, ou da aliança de civilizações - dela apenas restará a geografia.
Uma das consequências do ataques terroristas na Europa tem sido o estimular da reflexão sobre a identidade europeia. Afinal o que nos une? O que temos a perder? De que falamos, quando falamos do "nosso modo de vida"? Que Europa estamos a construir? No momento actual, qualquer reflexão sobre a Europa e a sua identidade futura tem de ter em conta dois elementos essenciais: a existência de uma guerra do terror em que estamos mergulhados - e falar em guerra não significa que a solução seja necessariamente militar; significa que ela não se limita a actos isolados e esporádicos - e a presença em rápido crescimento de mais de 15 milhões de muçulmanos na Europa, dos quais uma grande maioria são jovens e provavelmente cidadãos europeus.
Em relação à primeira questão, o endurecimento das medidas antiterrorismo tomadas pela Inglaterra e pela França parece-me indispensável e, sobretudo, inevitável: o seu objectivo não é restringir a liberdade - é defendê-la. A este título não deixa de ser interessante analisar o debate que teve lugar em Estrasburgo, no passado dia 7 de Setembro, onde mais uma vez esta questão opôs o Parlamento e Conselho Europeu: "Não estou de acordo com Tony Blair, quando ele diz que os direitos das vítimas são superiores aos direitos dos terroristas", afirmou Graham Watson, presidente do grupo dos liberais-democratas ingleses. "Os direitos humanos são indivisíveis." Será mesmo assim? Na verdade, esta retórica balofa da igualdade e indivisibilidade dos direitos, muito "eticamente correcta", tem como reverso da medalha uma ideia central do terrorismo: "Em democracia não há inocentes, pelo que os civis também são alvos" (Mohammad Sidique Khan). Aqui também a igualdade e indivisibilidade, desta vez da culpa. O resultado destas teses é que na Europa são os terroristas e não as forças policiais que se movem mais rapidamente.
Quanto à presença muçulmana na Europa, ela é uma realidade que qualquer reflexão sobre o futuro da Europa tem de ter em conta. Os saudosistas de uma Europa exclusivamente cristã, branca e ocidentalizada estão deslocados no tempo e no espaço. A questão que se coloca é que Europa estamos a construir com esta presença. E a este respeito debates sobre as políticas de integração, assimilacionistas da França ou multiculturalistas da Grã-Bretanha, embora interessantes como reflexões à posteriori, estão hoje ultrapassadas. Porquê? Porque hoje já não nos encontramos apenas face a pessoas marginalizadas e com dificuldades de integração, mas sim face a jovens gerações que partilham e afirmam orgulhosamente uma identidade outra: uma identidade islâmica transnacional hoje redimida pelos feitos da jihad e cada vez mais acessível através da Internet e da televisão - e que será largamente facilitada pela próxima emissão para o Ocidente em inglês do canal árabe Al-Jazira. "A geração dos meus pais considerava o islão como uma herança cultural que eles relacionavam com a Índia ou com o Paquistão", afirma Hassan Patel, porta-voz da federação das associações islâmicas de estudantes, em Londres, "mas hoje isto já não é assim. Os jovens pertencem a um islão planetário." Esta questão é central: é a umma islâmica e não a cidadania europeia que fornece a identidade, os valores, a ideologia, os mitos e os símbolos a estes jovens. Existe hoje, nas cidades multiculturais europeias, como Paris, Londres ou Amesterdão, uma subcultura islâmica própria do Ocidente que escapa totalmente às direcções e instituições comunitárias tradicionais a quem esses jovens acusam de pactuar com o inimigo e que são a presa ideal para as redes de terror que recrutam nas lojas de roupa à moda, nos cibercafés, pizzarias...
Com todas as diferenças essenciais, de origem, de filosofia, de ideologia, etc..., muitos destes jovens são de certo modo herdeiros dos Baader Meinhohff ou das Brigadas Vermelhas: odeiam a sociedade que os rodeia, estão prontos a destruí-la em nome de uma ideologia político-religiosa que por vezes pouco conhecem, mas que alimenta o seu imaginário, estimula as suas energias, dá alimento à sua raiva. O que querem? Acima de tudo gritar o seu ressentimento e a sua vingança. São a presa ideal para o terror.
Se não percebermos isto, todas as discussões sobre assimilacionismo ou multiculturalismo serão estéreis. Estamos hoje face a uma ofensiva que se concretiza em actos de terror, mas que na sua essência é ideológica e civilizacional. Mais do que testes de cidadania, uma integração bem sucedida pressupõe uma premissa básica que é a sociedade que acolhe gostar de si própria. No caso europeu, gostar daquilo que é a sua substância: a liberdade, o pluralismo, a igualdade das mulheres, a diversidade religiosa, o Estado de direito...
É um muçulmano, Tariq Modood, citado aqui no PÚBLICO por Alexandra Prado Coelho, que o afirma: "Se não tivermos orgulho em ser britânicos, como podemos pedi-lo aos outros?" Investigadora em assuntos judaicos

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