Eurico Gonçalves "É um prémio tardio!"

Com uma obra que conta já mais de meio século, e se mostra influenciada pelo surrealismo e dadaísmo, e também pela filosofia budista Zen, Eurico Gonçalves
viu-se agora distinguido pela bienal de arte do Alto Minho

"Já não esperava ser distinguido com este prémio. Já vem tarde de mais...", lamenta, entre risos, Eurico Gonçalves, vencedor do Grande Prémio da XIII Bienal Internacional de Artes de Vila Nova de Cerveira. Aos 73 anos, o pintor participou em todas as edições da iniciativa. "Mesmo sendo tardio, este reconhecimento não deixa de ter um significado especial para mim, porque se trata de uma bienal que sempre apadrinhei, desde a sua primeira edição, em 1978. Para mim foi uma surpresa!". Henrique Silva, director do evento, salienta que "é um prémio merecido".
Eurico Gonçalves, acompanhado por A-Ma, a sua cadela sharpei, falou ao PÚBLICO sentado junto às obras Caligrafia 2004 e Desdobragem 16-5-86, que lhe valeu o prémio e foi realizada por uma técnica inventada pelo artista, que a desenvolveu entre 1976 e 1986. Este procedimento está intimamente relacionado com uma estética pessoal, que percorre muita da sua obra, o Dadá-Zen.
Esta filosofia abarca o dadaísmo, corrente artística antiacadémica do início do séc. XX, e o budismo Zen, prática espiritual oriental. O prefixo "des" é particularmente importante para o pintor: "Segundo o Zen, é pela negação do sinal que se cria um novo sinal". Assim, ao "despintar", que consiste em tirar a cor, ao "descolar", que consiste em retirar o que foi colado, e ao "desdobrar", que consiste em ver o que fica, o que permanece resulta numa espécie de palimpsesto da nudez original do suporte. "Picasso também destruiu figuras para criar novas a partir das destruídas!".
Na obra que lhe valeu o prémio de Cerveira, Eurico Gonçalves aplicou as três cores primárias: o azul, o amarelo e o vermelho. Aos poucos, foi dobrando e desdobrando a tela, pelo que o resultado final surge nas suas dobras. A tinta espalha-se através dos pincéis na horizontal, da esquerda para a direita e de cima para baixo, sem atraiçoar a escrita ocidental: "A nudez do suporte representa o vazio", afirma, numa referência ao Zen: "É uma filosofia que procura ser o mais simples, o mais depurada possível". Exemplo disso é Caligrafia 2004: "A prática a preto e branco está longe da pintura colorida que tem um efeito decorativo muito austero no Ocidente, onde só depois de a tela estar toda preenchida é que os pintores se dão por satisfeitos", diz Gonçalves.
O ritmo orgânico dado pelo acto de escrever ou pintar reflecte o estado de espírito do artista. Pintura e escrita são indissociáveis. A escrita é sempre pintura e a pintura é sempre escrita, num mesmo movimento. O pintor afirma-se surrealista desde 1949, então com 17 anos. Admirava Henri Rousseau, De Chirico, Tanguy, Ernst e Miró, e deleitava-se com a poesia de Mário de Sá-Carneiro, Rimbaud, Lautréamont, António Maria Lisboa e Mário Cesariny. Ao surrealismo, o pintor vai buscar a noção de automatismo psíquico, na origem da "pintura gestual" por si desenvolvida. Todas as palavras, desenhos, colagens, dobragens fundem-se num único acto. A sua pintura é imediata, rápida e concisa, executando os seus quadros em segundos: "Demoro muito tempo a olhar para a superfície do quadro, até conseguir criar a vacuidade absoluta; depois executo rápida e incisivamente os traços na tela". O objectivo é transmitir o máximo com o mínimo de intensidade: "Os meus signos são codificados e inventados no momento; não é o que se observa com Ana Hatherly, por exemplo, em que conseguimos ler o que ela pinta". Por isso, Gonçalves define a sua arte como uma "pré-escrita", na qual o significado só é entendido a posteriori.
Quanto a influências, o artista é peremptório: "Não há influências; há encontros! Entre 1966 e 1967, escrevi uma carta ao pintor francês Jean Degottex pedindo-lhe para ser meu orientador artístico; aceitou, ficando surpreendido quando soube que eu era português!".
No próximo domingo, Gonçalves guiará uma visita no fórum cultural de Cerveira e, a 31 de Agosto, executará uma desdobragem ao vivo.
O pintor português expõe desde 1954. Em 1971 recebeu uma Menção Honrosa do Prémio da Crítica de Arte Portuguesa. Em 1998 foi-lhe atribuído o Prémio de Pintura Almada Negreiros. Desde 1964, tem publicado artigos de divulgação de arte contemporânea e estudos sobre a Expressão Livre da Criança, o Dadaísmo, o Zen e a Pintura-Escrita.

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