Tempo de tios: a radiotelefonia

Para me acalmarem os últimos soluços, puseram-me a ouvir telefonia. Assim, no mesmo dia, fiz a primeira experiência de ossos partidos, de hospital e de rádio

1.Meus dias de rapaz e de adolescente podem não ter aberto a boca a bocejar sombrios, mas abriram os ouvidos a escutar raios e coriscos provindos de um aparelho que foi talvez a maior maravilha tecnológica da minha tenríssima infância.Tenríssima? No domingo passado, o PÚBLICO deu-me a notícia: tinha eu 6 meses (1 de Agosto de 1935) a Emissora Nacional começou as suas transmissões. Se sei, pelas fontes do costume, que o nascimento da radiodifusão em Portugal se pode situar em 1925 (1920 nos EUA; 1922 na Grã-Bretanha, em França e também na União Soviética; 1923 na Alemanha, em Espanha e nos Países Baixos), não tenho nenhum sociólogo à mão de semear (os que conheço estão de férias) para me dizer quando é que o hábito de ouvir telefonia se generalizou na classe média. Mas, sabendo que só em 1930 o Estado legislou e que só em 1933 Duarte Pacheco começou a pensar numa Emissora Nacional (já o Rádio Clube emitia desde 1931), julgo não errar se situar o boom de vendas de "radiotelefonias" (como Vasco Santana lhes chamou na primeira alusão cinematográfica à novidade, na Canção de Lisboa de 1933 e de Cottinelli Telmo) muito próximo do ano em que nasci e em que nasceu a Emissora. Há 70 anos.
A mais distante memória que tenho de um aparelho desses localiza-o na Rua Rodrigues Sampaio, em casa de uns tios meus. Eu tinha sido levado a passear, como era hábito, ao Parque Eduardo VII, frente à casa em que nasci, acompanhado pela criada dos meninos, que se procurava distrair como podia, um olho em nós e outro em meninos mais crescidos do que nós. Perto de onde é hoje o Pavilhão Carlos Lopes e numas escadas de pedra que por lá havia, teimei em subi-las sem mãos dadas e com estas bem enterradas nos fundos dos bolsos do sobretudo. A certa altura (distraiu-se ela ou distraí-me eu e, se há gente que tem reflexos rápidos, outros os têm muito lentos) desequilibrei-me e fui de trombas ao chão e de cana do nariz à esquina dos degraus. Houve sangue e juntou-se muita gente. Levaram-me para o Hospital de Santa Marta, onde a minha tia da Rua Rodrigues Sampaio, logo prevenida, já me esperava. Lembro-me dos olhos comovidos dela, enquanto me coziam o nariz e eu berrava como um ginete carpeado e lembro-me de ter sido levado depois, muito aconchegadinho, para essa casa de elevador e grandes espaços. Para me acalmarem os últimos soluços, puseram-me a ouvir telefonia. Assim, no mesmo dia, fiz a primeira experiência de ossos partidos, de hospital e de rádio.
Pelas duas primeiras, juro. Pela última não, mas conscientemente não recordo anterior. E por isso me lembro bem do aparelho enorme, do tamanho de uma cómoda, em que se procuravam as emissoras num rolo de papel com números inscritos. Quase tudo era forrado a veludo verde, e o conjunto, na minha memória, era bastante mais crescido do que eu todo nessa altura. Uma vaga associação ao medo virá do hospital e do acidente ou dos sons que reproduzia?
Depois vieram aparelhos mais pequenos. O de casa dos meus pais era ao baixo, bastante largo e com um olho verde como os olhos das videntes. Era muito gabado por ter "boas vozes". Mas o formato mais divulgado era ao alto, com um círculo ao meio, que aceso se amarelecia e apagado se escurecia.
Se bem me lembro, e embora na sala eu só pudesse entrar com as mãos atrás das costas para não mexer onde não devia e onde mais me apetecia, o aparelho só se ligava ao fim da tarde e, às vezes, à noite, em fond de musique. Desde que me conheço, em todas as casas só se ouvia a Emissora, embora saiba de ouvir dizer que o Rádio Clube de Botelho Moniz esteve muito em moda durante a Guerra de Espanha. Dava-se muita atenção ao uso da língua e à pronúncia. Por exemplo, essa guerra fez uma vítima em Portugal: um locutor teimou em chamar ao lendário herói do Alcazar de Toledo, general Moscardó, o general Moscardo. Asperamente censurado, aprendeu a lição e não repetiu a gaffe. O pior foi quando lhe coube, num programa de música clássica, apresentar O Voo do Moscardo de Rimsky-Korsakov. Tão bem instruído fora que anunciou O Voo do Moscardó. Foi despedido.

2. Mas, nos anos da guerra, a telefonia ficava acesa até altas horas. É verdade que me deitavam muito cedo e, por lógica cronológica, eu não devia poder lembrar-me. Mas é igualmente verdade que me lembro, com susto imenso, dos apitos-silvos das ondas curtas onde os meus pais tentavam captar a BBC ou mesmo Berlim. Era o tempo da "BBC fala e o mundo acredita" - e de Fernando Pessa puxar do possível humor britânico para se referir ao "senhor Hitler", com sarcasmo formal. Mas, como a minha mãe também falava alemão, às vezes ligavam Berlim para fazer a mediana da propaganda. Não, não me lembro de ouvir Hitler na rádio, ele que, com Roosevelt, foi o político que mais aproveitou e mais se aproveitou da rádio para hipnotizar ou seduzir milhões. Por cá, a voz de Salazar nunca foi "radiogénica". "Se não falha este pequeno aparelho que parece estremecer às menores vibrações da minha voz, eu estarei falando, neste momento, para a maior assembleia que em Portugal alguma vez se congregou a escutar a voz de alguém", disse Salazar no seu primeiro discurso radiofónico, a 9 de Dezembro de 1934. Mas houve grande temporal e o "pequeno aparelho" falhou mesmo. No Porto só se ouviram "ruídos estranhos", "palavras ininteligíveis" (PÚBLICO 31 de Julho de 2005), tão estranhos e tão ininteligíveis como mo eram as vozes inglesas ou alemãs que sossegavam ou apavoravam os meus pais nas noites de 1940 e 1941 e que eu ouvia ainda hoje não sei como. Mas vejo, como se fosse ontem (e, neste caso, o chavão é menos chavão), outro tio meu, em Portimão, levantar-se de um salto de cadeira e anunciar: "Os alemães invadiram a Rússia." A radiotelefonia acabara de dar a notícia.

3. De tia em tio, a rádio leva-me a outro, esse do lado materno, único irmão da minha mãe e último daqueles que tiveram Bénard como último apelido. Dono da casa de brinquedos que herdara do meu avô, era uma visita fugaz (sempre aos almoços) mas pesadíssima pelas suas imensas gordura e altura. Para nós, era também uma espécie de Pai Natal paisano (sem barbas nem gorros) que, no dia do Ano Novo, nos trazia os presentes mais cobiçados da loja dele.Quando a guerra acabou, foi o primeiro membro da família a voar até aos Estados Unidos, em busca de novidades que lhe animassem o negócio. Jamais me esqueci do espanto que foi quando nos mostrou o primeiro rádio portátil que todos nós víramos em vida nossa. Uma telefonia que não era preciso ligar à corrente, literalmente sem fios? Um rádio que se podia levar para toda a parte, até para a Arrábida? Robusto, incomparavelmente maior que os "portáteis" futuros da Caparica ou da "horrível" Trafaria, esse aparelho pareceu-nos a revolução máxima, até ele começar a falar que já se começava a falar de televisão.
Mas essa maravilha (à época raríssima em Portugal) permitiu à família um acréscimo de informação. Grande nova acontecida a horas em que em Portugal a noite ia alta, ele a ouvia e repetia. Foi assim que soubemos da morte de Roosevelt e do suicídio de Göring, muito antes da maioria dos portugueses.

4. Até aqui, estive no domínio público. Posso privatizar-me?Flashback para o Jardim do Tabaco, outra casa de tias, como já noutras crónicas contei. Vejo-me sentado num maple pequeno, forrado de pano encarnado às riscas brancas, à beira do enorme retrato de um tio-avô pendurado na parede e de uma mesinha com uma telefonia.
Era Inverno, era o princípio da noite. Fazia quentinho e cheirava bem, como os cheiros que adoro e a que volto sempre. Lia romances da colecção Vampiro, colecção de livros policiais: Ellery Queen, S. S. Van Dine, que eu tinha 12-13 anos, por aí. Será possível ou é sinestesia a mais? Quase juro que o que a telefonia transmitia era, invariavelmente, todas as terças-feiras, à mesma hora, com a mesma regularidade com que eu ia jantar nessa casa arcana, a Sinfonia nº 8, a dita "Incompleta" de Schubert, que assim se tornou na primeira música clássica a obcecar o obsessivo ser que sou.
Pick-ups e discos só entraram na minha vida na década seguinte, anos 50, quando comecei também a ir a concertos e a óperas. Até lá, a minha educação musical foi construída a ouvir a Emissora 2 (antepassada da Antena 2). Ainda não tinha telefonia minha, mas, todas as noites, ia para casa da minha avó e ouvia o programa da 9 e meia à meia-noite. Alguns dos meus muitos cadernos de memórias esparsas são dedicados ao que ouvi em 1952, 1953 ou 1954, com cópia conforme de todos os "créditos" anunciados: compositor, título da obra, intérprete ou intérpretes. Sem a rádio eu não teria descoberto Mozart e Beethoven, Schubert e Schumann, Wagner e Verdi, Mahler e Bruckner.
Tudo começou pertinho de uma luz amarela e de uma reprodução sonora que hoje arrepiaria o mais duro de ouvido, há coisa de 60 anos, quando já havia uma rádio em casa de cada português e se aproximavam os tempos do romance da coxinha e da Simplesmente Maria. Tudo começou? Eu comecei.

5. Mas ficaria de mal comigo e de mal com a minha autobiografia, se omitisse, pelos mesmos anos 40 em que descobri a "Incompleta", os relatos de futebol aos domingos, quando o meu pai, para me castigar de más notas, me obrigou a devolver o cartão nº 13685 de sócio do Sporting. Alfredo Quadro Raposo e a primeira vitória sobre Espanha por 4-1 ou a derrota do Benfica frente ao Sporting, por 6-1. O Leão da Estrela (o filme) dá uma ideia aproximada, só que eu tinha 12 anos e o Sporting nunca foi maior. Podia ainda contar... Mas já não tenho espaço para as elipses necessárias e havia quem não me perdoasse se eu chamasse para aqui o coelhinho de Madalena Patacho, irmã de Henrique Galvão, que dirigiu a Emissora de 35 a 40 e, antes de tomar o Santa Maria, a proclamou "mais um soldado que se alista ao serviço do Estado Novo".Vozes de outro mundo ou outro mundo em vozes, como os filmes americanos dos anos 40 os encenaram, com a mais sublime expressão no Clifton Webb de Laura. "Madder music and stronger wine."

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