Familiares de doentes lobotomizados lançam campanha contra o Nobel de Egas Moniz

O objectivo é condenar a técnica inventada pelo português, mas praticada em massa nos Estados Unidos

Trinta anos depois de os médicos terem deixado de praticar lobotomias, familiares de pacientes que sofreram esta intervenção querem que seja revogado o Prémio Nobel atribuído em 1949 ao seu inventor, o neurologista português Egas Moniz.Um novo livro e um historiador da medicina afirmam que esta intervenção cirúrgica só ajudou cerca de dez por cento de 50.000 norte-americanos nos quais foi praticada, entre meados dos anos 30 e os anos 70. Nos EUA, a lobotomia foi usada para tratar doenças mentais, epilepsia e até dores de cabeça crónicas.
Egas Moniz procurava formas de tratar doenças mentais incuráveis, mas um médico norte-americano, Walter Freeman, usou e abusou da sua técnica, tornando-o numa prática com laivos criminais.
O método desenvolvido por Egas Moniz não era tão radical. O neurocirurgião teorizava que algumas doenças mentais eram causadas por uma ligação anormal dos circuitos neuronais, que os fazia viver repetidamente os mesmos pensamentos patológicos. Essa ligação, julgava ele, poderia ser interrompida através da cirurgia. Experimentou cortar as ligações fibrosas (a chamada "matéria branca") que unem os lobos frontais. Nasceu assim a leucotomia, ou corte da matéria branca. Mas Egas Moniz realçava que a técnica deveria ser usada somente em doentes para os quais não havia outra esperança.
Apenas cerca de um terço dos pacientes operados melhoravam. A apatia e a insensibilidade afectiva eram efeitos secundários frequentes. Mas o trabalho de Egas Moniz foi apoiado pelos neurocientistas da época, porque não existiam medicamentos eficazes para o tratamento das desordens psiquiátricas - os doentes acabavam encerrados em asilos e até jaulas -, pelo que a leucotomia era uma esperança.
Mas, nos EUA, Freeman operou milhares de doentes até 1949, de uma forma mesmo bárbara: inseria um picador de gelo pelos olhos dos pacientes, com um martelo e anestesia local, e destruía de forma indiscriminada os lobos frontais. Por isso baptizou o seu método lobotomia (corte dos lobos) em vez de leucotomia (só a matéria branca era cortada).
A leucotomia não foi o único motivo pelo qual Egas Moniz recebeu o Nobel. A invenção da angiografia - uma forma de tornar visíveis áreas do cérebro ou do sistema circulatório, injectando uma solução que faz contraste nas radiografias foi o segundo motivo, que, aliás, já o tinha feito constar da lista dos nobelizáveis em 1928 e 1933.
Os conhecimentos actuais sobre a lobotomia estão a levar familiares de pacientes norte-americanos a pedir a revogação do Nobel entregue a Egas Moniz, diz a agência Lusa. "Como é que se pode confiar no Comité Nobel, quando não admite um erro tão terrível", pergunta Christine Johnson, bibliotecária médica que lançou uma campanha pela revogação.
A avó, Beulah Jones, que começou a sofrer alucinações em 1949, foi lobotomizada em 1954, depois de ter sido tratada com choques eléctricos, e passou o resto da vida em instituições, contou Johnson à AP.
Outro membro da campanha, a enfermeira reformada Carol Noell Duncanson, diz que a mãe foi lobotomizada durante a gravidez para acabar com dores de cabeça crónicas em 1949. A senhora foi enviada para casa incapacitada, segundo a filha.
Johnson, cuja avó morreu em 1989, iniciou há anos um site na Internet ( http://www.psychosurgery.org ) para criar uma rede de apoio entre familiares de lobotomizados. Depois, começaram a exigir a retirada de um artigo no site da Fundação Nobel que justifica o prémio a Egas Moniz.
"Não há nenhuma hipótese de se revogar o prémio", declarou o director executivo da fundação Nobel, Michael Dohlman. A Carta Nobel não contém nenhuma cláusula que preveja uma revogação. Perante isto, Johnson procura agora obter a adesão à campanha de outros vencedores do Nobel.

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