OS "ÓRFÃOS" DA ROMÉNIA, 15 ANOS DEPOIS

"O que eu vi está para além do que é acreditável. Era horrendo", conta uma britânica que chegou à Roménia em 1990, meses depois da queda de Ceausescu, para trabalhar com crianças a cargo do Estado. "Havia 30 em cada quarto e algumas vezes uma cama para cada cinco", relata uma
ex-residente. A BBC on line foi ver onde estão as crianças romenas que cresceram sem família

Foi há 15 anos que o mundo descobriu, chocado, as dezenas de milhar de crianças que viviam nos orfanatos, lares e afins da Roménia. Cresciam isoladas do resto da sociedade, eram frequentemente vítimas de castigos físicos e de abusos sexuais, algumas sofriam de malnutrição. O relato é de Kate McGeown, para a BBC on line. Trabalhou como voluntária no hospital psiquiátrico para crianças, na cidade de Siret. Da primeira visita que fez ao local, em 1996, recorda as crianças semi-despidas que "pulavam em todas as direcções" e "o cheiro intenso a urina e a suor". Nove anos depois, é a autora de uma série de artigos que o site publicou nos últimos dias (http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/europe/4629589.stm).
Objectivo: traçar o percurso de algumas das crianças que viviam nas "instituições de Ceausescu", contar como eram tratadas e como se adaptaram quando saíram, onde estão hoje - sendo certo, como fez saber Silvia Boeriu, da organização Save the Children, que muitas simplesmente desapareceram. Aos 18 anos, a maioria dos miúdos era mandada embora, sem a mínima noção do que era o "mundo exterior".
"O que eu vi está para além do que é acreditável. Era horrendo", contou Monica McDaid, uma professora britânica que chegou à instituição de Siret em 1990, meses depois da queda de Ceausescu. "Havia crianças que não viam a luz natural há anos."
Mihai, 28 anos, viveu nesse hospital. "A minha vida era comer e dormir - apenas existir", relatou a McGeown. "Éramos agredidos pelos funcionários e quando era mais jovem era abusado pelos rapazes mais velhos."
A instituição fechou, as autoridades ainda localizaram a família, mas Mihai não se adaptou e acabou por regressar a Siret, onde vivem muitos dos ex-colegas. Tem, contudo, uma existência muito diferente. Trabalha, comprou um apartamento - "Sou livre", conta à BBC on line.

"Davam-nos injecçõespara nos acalmar"
Segundo relata Kate McGeown, estas instituições para crianças eram o resultado do desejo de Ceausescu de aumentar a população do país. Proibidos que eram os contraceptivos, e encorajados os casais a terem tantos filhos quantos pudessem, muitos acabavam por ter bastantes mais do que os que podiam sustentar.
Acabavam por entregar as suas crianças aos cuidados do Estado ou simplesmente abandonavam-as. E assim nasceram enormes orfanatos.
As instituições destinadas aos que tinham alguma deficiência eram as que tinham pior reputação. Numa em Cighid, na região de Bihor, a mortalidade chegou a ser de 50 por cento num ano. Muitas das crianças nestas unidades, não eram, na verdade, deficientes. Tinham um irmão que era, ou dava-se apenas o acaso de haver lugar para elas.
"Davam-nos injecções para nos acalmar. Não sei o que era, mas fazia-nos dormir muito", diz Vasile, hoje com 21 anos.
Houve quem não recuperasse do trauma e tenha mergulhado no mundo do álcool, das drogas ou dos sem-abrigo. Nicolae, 28 anos: "Quando saí do orfanato [aos 18], não tinha mais nada para além da roupa que tinha vestida. Vivo na rua desde essa altura."
Mas como Mihai são também muitos os que refizeram a sua vida e garantem ser felizes. "Fugi de uma instituição em Siret há mais de dez anos e pouco depois casei. O meu marido também esteve lá. Hoje temos emprego e um apartamento - e também os nossos filhos. Sou muito feliz. Este era o sonho das nossas vidas - ter uma família nossa", conta Mihaela, 30 anos.

"Apanhei hepatite,ninguém reparou"
Foram precisos vários anos, após a queda de Ceausescu, para algo mudar verdadeiramente no sistema de protecção às crianças, escreve McGeown.
Prova desse atraso é o depoimento de Viorica, hoje com 19 anos, grande parte dos quais passados numa instituição: "Havia 30 em cada quarto e algumas vezes uma cama para cada cinco de nós. Não podíamos sair e na maior parte das vezes não nos era permitido sequer brincar. Não tínhamos nada para fazer. Os funcionários costumavam bater-nos muito. Acho que gostavam." E continua: "Quando tinha 10, 11 anos apanhei hepatite e ninguém reparou ao longo de uma semana."
Viorica saiu em 1999, dois anos antes de a instituição fechar. Hoje, com a ajuda de uma organização (a O Noua Viata, que significa "uma nova vida"), arranjou trabalho e tem um tecto. Aos domingos reza para que um dia os pais apareçam. "Não me consigo lembrar deles."
"A vida era uma contínua luta pela sobrevivência", lembra Ioan, que passou vários anos noutra instituição, em Tirgu Ocna.
Um estudo recente da Unicef mostra que as taxas de abandono de recém-nascidos no país continuam altas. Silvia Boeriu, da Save the Children Romania, garante a McGeown que muitos funcionários dos berçários "continuam a encorajar as mulheres a desistir dos seus filhos". Cerca de nove mil crianças são abandonadas por ano.

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