Cova da Moura Magnum foi à comunidade que se queria mostrar

No sábado, quando o Presidente Jorge Sampaio visitar a Cova da Moura, inaugura a exposição Nós Kasa, que a norte-americana Susan Meiselas preparou com a comunidade local. É uma antecipação de Espelho Meu, a abrir em Julho no CCB. A visita presidencial começa às 11h30. Noutros dias pode-se ir ao bairro com a Associação Cultural Moinho da Juventude. "Aqui não há só pessoas más." Por Vanessa Rato (texto) e Rui Gaudêncio (fotos)

Cá de baixo, da Damaia, a Associação Cultural Moinho da Juventude vê-se no alto de um morro, um edifício branco e estreito, equilibrado numa das ravinas da Cova da Moura. Pode-se subir pelo asfalto, às curvas entre o casario, ou atalhar por socalcos de couves, mini-roseiras, aloés, gladíolos e hastes de trigo quase maduro.Lá em cima cheira a figos e o Parque de Monsanto estende-se no horizonte como uma grande língua verde entalada entre Benfica e Alfragide. Esta é a vista para a cidade - atrás das costas há uma malha de construção precária que se vai fechando sobre sete mil pessoas quase exclusivamente de origem africana, taxas elevadíssimas de desemprego, maternidade adolescente e criminalidade: foi aqui que a fotógrafa da Magnum Susan Meiselas chegou há sete meses.
Há sete meses, faltava muito para o arrastão de Carcavelos e o bairro voltar a estar no centro das atenções pelos piores motivos. Mas também faltava muito para o Presidente Jorge Sampaio anunciar a sua visita deste sábado e os preparativos fazerem parecer fácil entrar num dos bairros mais problemáticos de Lisboa.
Há sete meses era Outono, estava frio, e Susan Meiselas era uma desconhecida de máquina fotográfica ao ombro que um mês antes recebera um telefonema em Nova Iorque.
O convite foi o mesmo dirigido a outros dois membros da mais reputada cooperativa de fotojornalistas do mundo: visitar Portugal para suprir uma falha nos arquivos da agência onde as imagens mais recentes do país eram de 2000. No horizonte, havia também o objectivo de a exposição Espelho Meu, do Centro Cultural de Belém, poder fazer a ponte completa entre os primeiros registos do Portugal do anos 50 de Henri Cartier-Bresson e o país contemporâneo (ver texto ao lado). O brasileiro Miguel Rio Branco concentrou-se em detalhes de sítios como a Quinta da Regaleira, em Sintra, o checo Josef Koudelka escolheu paisagens naturais. Meiselas interessou-se pela emigração.
No principio, tinha apenas a noção vaga de que este era "um problema recente em Portugal, desde a descolonização" (ver entrevista). A Cova da Moura surgiu com a descoberta de um folheto de divulgação do projecto Sabura, que convida a fazer um percurso pelo bairro na companhia de membros da Associação Cultural Moinho da Juventude.
Meiselas foi atrás da ideia de uma comunidade que se queria mostrar. No fim da primeira semana tinha apenas três rolos de dez fotografias cada e evitava entrar na maioria das ruas. "Tive medo, claro, e não se começa a fotografar as pessoas assim. As imagens não acontecem, são ganhas. O trabalho é esperar e foi o que fiz, até ao dia em que um rapaz me pediu para lhe fazer um retrato. Foi a partir daí", conta a fotógrafa que, há dois dias, andava no bairro de porta em porta a distribuir imagens assinadas aos fotografados.
Não longe de onde em Janeiro o agente da PSP Ireneu Dinis foi assassinado, há uma esquina com os nomes de oito rapazes do bairro mortos nos últimos cinco anos. Em frente, o dono de uma oficina recebeu uma fotografia. Mais acima, onde a rua desemboca numa praceta com crianças a espreitar entre tijolos nus, uma adolescente recebe outra. Horas depois, há-de aparecer no Moinho da Juventude para requisitar uma das oito máquinas digitais que a Canon ofereceu à associação através de Meiselas e com as quais a fotógrafa está a dar um workshop.

Os inscritos no workshopNa quarta-feira, quando o minicurso arrancou, havia 12 inscrições. Elisabete, 20 anos, foi a única a chegar à associação às dez da manhã. Veio com uma bebé de dois meses ao colo, a mais nova de três filhos, um dos quais com seis anos. Paulo, 23 anos, é o pai desta criança e de mais duas de outras mulheres. Chegou pouco depois.
Num bairro em que metade da população tem menos de 20 anos e a maioria não vai além da escolaridade obrigatória, Paulo e Elisabete estão entre os muitos desempregados.
Quem trabalha, chega ao workshop ao fim do dia. Bela, 25 anos, está nesse grupo com uma das três filhas - o marido foi um dos jovens assassinados no ano passado "por uma data de tipos encapuzados que o meteram dentro de um carro e o deixaram a morrer à porta de casa". João era um dos amigos de Santinho, que chega a meio da tarde com a tatuagem "Cova M." a espreitar pela manga.
Santinho, 22 anos, nasceu em Luanda e chegou a Portugal com a mãe em 1980. Continua ilegal no país. No sábado vai estar na escolta de Jorge Sampaio, a seguir pelas ruas o percurso marcado por Tazy, um graffiter local. As fotografias que têm estado a fazer durante o workshop vão estar expostas num moinho abandonado a apenas passos da associação - as de Meiselas vão estar pelas ruas em grandes telas.
"Acho que estamos a fazer tudo por tudo para melhorar o bairro. Desde 2000 perdemos nove pessoas. É muito. Estamos cansados deste tipo de perda. Aqui não há só pessoas más, há pessoas boas, de todos os tipos", diz Santinho.
Ontem, o site da Frente Nacional na Internet tinha anunciada uma manifestação skinhead precisamente para sábado (ver pág. 17).

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