A lamúria de Alice

Em Alices, o espectáculo que está em cena no Espaço Teatro da Garagem, a partir da tradução portuguesa do texto dramático Alice in Bed (1993), da recém-falecida escritora norte-americana Susan Sontag, a personagem Alice é incorporada por cinco actrizes. Alice é baseada numa figura oitocentista, Alice James, que teve um percurso clínico dominado por inúmeros internamentos, acabando por ficar acamada nos últimos sete anos da sua vida (morreu com 43 anos, de cancro da mama). É este momento de imobilidade e de clausura, em que esteve confinada a uma cama, que é trabalhado no texto de Sontag e no espectáculo encenado por Rafaela Santos, a convite da estrutura de criação e produção JumpCut.Alices poderia ser atravessado por uma intensa, densa, atmosfera de reclusão, mas tal acaba por ser apenas indiciado pela cenografia de Henrique Ralheta - o chão está coberto com um lençol com algumas aberturas, através das quais as personagens entram, saem ou ficam semienterradas, revelando somente algumas partes dos seus corpos, como, nalgumas cenas das Alices, o torso, a cabeça e os braços, explorando a imobilidade a que estas estão sujeitas). Já no trabalho de interpretação, esta atmosfera perde a sua consistência, sobretudo no caso das Alices (Anabela Brígida, Carla Bolito, Maila Dimas, Patrícia Galiano e Rita Durão), pela opção da encenadora de lhes atribuir um registo vocal infantilizado e lamuriento, que destrói a dimensão crítica, feminista, do espectáculo e o transforma numa espécie de desfiar de tristezas, deslocando a pertinência dos argumentos para a simples lamechice. E nem uma alusão à Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, justifica, sem que haja primeiro consciência do jogo proposto, o tom infantilizado, as gargalhadas forçadas ou os constantes suspiros: tanto o universo infantil como o universo da imaginação não têm de ficar necessariamente presos aos inúmeros estereótipos que insistem em os imbecilizar.
Não há, portanto, a inscrição de uma dimensão trágica nos corpos das cinco Alices, circunscritos ao espaço sufocante de um quarto, que contamine a própria dimensão onírica que é convocada em inúmeros momentos do espectáculo, evidenciando, simultaneamente, o seu potencial de libertação e de profunda ilusão face à cama concreta, real, a que Alice se encontra limitada. É esta inscrição que os cinco corpos acriticamente infantilizados e/ou lamurientos tornam impossível.

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