Torne-se perito

Como a lesão de Hilário abriu caminho ao cantinho do Morais

O único troféu europeu de futebol do Sporting foi conquistado com três jogos de desempate e sofrimento na época de 1963/64. Pelo meio ficou a goleada ao Manchester United e os 16 golos marcados aos cipriotas, o que ainda constitui recorde nas provas da UEFA. Hilário, glória do Sporting, lesionou-se dias antes do jogo decisivo, mas o troféu foi-lhe levado a casa. Por Filipe Escobar de Lima

A carreira do Sporting em 1964 ficou marcada pelo drama e muito sofrimento - mas terminou de forma épica com a conquista da Taça das Taças. O troféu foi levado por toda equipa a casa de Hilário: a lesão sofrida três dias antes da finalíssima impediu o defesa de participar na vitória sobre o MTK de Budapeste, em Antuérpia.Falhou a presença no encontro mais emblemático, mas enviou do hospital um telegrama aos companheiros de equipa: "Lutem até ao fim, tenho-os no coração." Mal a comitiva aterrou no aeroporto, ultrapassaram o banho de multidão e foram a correr para a casa de Hilário entregar-lhe a taça - ficou célebre a fotografia do defesa ainda com a perna engessada e a beber champanhe pelo troféu. "Antes de partirem disseram todos que me queriam dedicar a vitória e, como aconteceu mesmo, foram todos a correr lá para casa...", recorda Hilário.
"Foi uma campanha fantástica. A equipa na altura era muito boa, bem como as equipas na competição. Acreditámos sempre, mas foi o jogo com o Manchester United que nos fez acreditar verdadeiramente", lembra o defesa. "Nessa altura, e depois da derrota em Inglaterra (4-1), ganhávamos 2500 escudos e o prémio de jogo eram 25 contos (o equivalente hoje a 2/3 mil contos) - puxa! E deu-se o milagre", conta Hilário.
Hilário seria considerado, dois anos depois, no Mundial de 66, o melhor defesa esquerdo do mundo. O lateral jogava, no entanto, com o pé direito e era uma peça influente na equipa leonina. Mas falharia a finalíssima da Taça das Taças. "O Sporting antecipou o jogo com Vitória de Setúbal do campeonato e jogámos três dias antes de partir para Antuérpia. Aí, lesionei-me gravemente, parti a tíbia, e quem me substituiu foi Morais - ainda bem, ficou o cantinho do Morais!", solta Hilário.
Para chegar à final, o Sporting teve de ultrapassar três jogos de desempate, entre eles o encontro decisivo de Antuérpia. Logo a abrir, na primeira eliminatória, os "leões" só conseguiram afastar o Atalanta na terceira partida (0-2, 3-1 e 3-1). A história gloriosa dos sportinguistas começou a ser escrita na segunda eliminatória, com uma goleada histórica sobre o Apoel Nicósia: 16-1.
Diz o livro Estórias de Alvalade que o destino já estava traçado à formação cipriota quando lhe cederam a cabina... 16. A ficha de jogo ainda mostra a marcha do marcador - golos com intervalos de menos de um minuto... Mascarenhas marcou seis (esta meia dúzia de "Masca" ainda é recorde absoluto nas competições europeias), mas do outro lado da glória esteve o guarda-redes do Apoel: Mavroudes ainda desabafou no final do jogo - "Não viram? Nós estamos fora da categoria do Sporting..." "Até com a barriga marquei", conferiu Mascarenhas.
O Apoel tentou renunciar ao segundo jogo e apelou à UEFA, mas o Sporting dispôs-se a pagar as despesas da deslocação, pois o seu estádio não tinha condições. Alvalade voltou a encher, mas o resultado não passou dos 2-0...

A goleada no "milagre Manchester"
A tabela de esforço perdido no segundo com os ingleses do Manchester United ficou para a história: Carvalho (1,1kg), Pedro Gomes (2,6 kg), Hilário (2,3 kg), Mendes (2,3 kg), Alexandre Baptista (700 g), José Carlos (3,7 kg), Osvaldo (2,3 kg), Mascarenhas (2,5 kg), Figueiredo (3kg), Géo (3,7 kg) e Morais (3,5 kg). Total: 27,7 quilos despendidos. "A emoção no jogo era de tal ordem que até houve gente na bancada a perder peso também", disse o guarda-redes do Sporting, Carvalho.
O Sporting foi goleado em Manchester, por 4-1. Em Alvalade, o Sporting teria de dar a volta ao resultado respondendo com uma goleada. "Fiz o relato desse jogo memorável para a Emissora Nacional. A vitória do Sporting sobre o Manchester United foi uma loucura. Quando as equipas entraram no relvado comentei com o Hélder Soares, que era o assistente, "hoje vai acontecer aqui qualquer coisa excepcional". Foi uma grande noite de Osvaldo Silva. Aliás, o melhor golo que relatei em toda a minha carreira foi o primeiro desse jogo com o Manchester, marcado por ele", lembra o relator desportivo Artur Agostinho, no livro Estórias de Alvalade.
Osvlado marcou logo aos três minutos - mas foi na segunda parte, com três golos em sete minutos, que levou o Sporting aos ceús. Eliminado o Manchester, de Matt Busby - o mesmo que disse no final "Há muito tempo que não via uma equipa jogar tão bem como a do Sporting" - seguiu-se o Lyon.
"O jogo em França foi dos que mais me marcou", diz Hilário. "Empatámos 0-0 em Lyon, mas fizemos uma exibição fantástica e, no final do jogo, os adeptos pediram para irmos ao centro do terreno para nos aplaudirem. Todos de pé a aplaudir... Foi memorável!". Foi necessário um terceiro encontro, depois de novo empate em Lisboa (1-1) - aqui ainda não valia a regra de o golo valer a dobrar nos jogos fora, tal como no jogo inaugural frente ao Atalanta. Em Madrid, os "leões" venceram por 1-0 e qualificaram-se para a final.
Aí, no Estádio de Heysel (Bruxelas) o empate 3-3 obrigou à finalíssima em Antuérpia. A lesão de Hilário obrigou à entrada de Morais para o seu lugar: seria de canto directo que o Sporting chegaria à conquista do único troféu europeu da sua história. O "Cantinho do Morais" virou disco, música popular, canção nacional e figura ainda hoje em muitos nomes de restaurantes. Aconteceu a 15 de Maio de 1964.

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