Cronenberg "explica" em Cannes a história da violência

Adaptação de uma BD,
A History of Violence é obra atípica na filmografia de David Cronenberg

É uma família perfeita, e isso vê-se mesmo quando há um pesadelo: pai, mãe e irmão acorrem para tranquilizar a querubínica menina da família que sonhou com monstros. Os monstros não existem mas, em todo o caso, mais vale deixar a luz acesa... É assim, com a inocência da infância, que o canadiano David Cronenberg insinua, desde logo, a tese que pretende demonstrar em A History of Violence: que o terror, a violência, têm uma origem primitiva, são uma pulsão que existe no princípio da nossa história.É uma história de violência, mas Cannes respirou de alívio - e até se riu, durante a projecção do filme -, ao confirmar que podia contar com A History of Violence para a Palma de Ouro. Há três anos, Cronenberg esteve em competição com Spider, que dividiu as opiniões por ser, aparentemente, menos cronenbergiano do que o habitual - não era um projecto do realizador, mas do actor que o protagonizou, Ralph Fiennes, que convenceu Cronenberg a filmar em Londres um thriller paranóico de contornos kafkianos.
A History of Violence também não é um projecto de Cronenberg - é preciso esperar até ao próximo ano, por Painkillers, thriller sobre uma sociedade em que a cirurgia se tornou no novo sexo e a dor é o novo fruto proibido, e que tem sido publicitado, de forma espectacular, na revista Variety, com a imagem de um torso feminino onde se coseu o título do filme - e, por isso, havia razões para reservas.
O próprio Cronenberg avisara: "Pensei que o filme era demasiado clássico, demasiado comercial para ser seleccionado." Adaptação da BD homónima de John Wagner e Vince Locke, A History of Violence foi-lhe encomendado por um estúdio de Hollywood, a New Line, filial da major Warner. É verdade que faz figura de obra atípica na sua filmografia, é verdade que se pode pensar nele como algo equivalente a The Straight Story na carreira de Lynch, é verdade que nos vamos lembrar de Clint Eastwood e, em particular, de Imperdoável. Cronenberg também se tem referido aos westerns como matriz do confronto que está no centro do seu filme: um homem que pega numa arma para proteger a sua família.

Uma família sem históriaÉ uma história de violência, é uma "história muito americana", como afirmava ontem em conferência de imprensa - e começa a evidenciar-se que são os filmes centrados na América, de Last Days, de Gus Van Sant a Manderlay, de Lars Von Trier, que têm salvo a honra de uma competição algo decepcionante, embora, até anteontem, o filme da competição mais cotado pela crítica tenha sido Caché, de Michael Haneke.
Como Haneke, Cronenberg põe em evidência o segredo subterrâneo de uma família. Os Stall são uma família perfeita numa perfeita pequena cidade rural de Indiana. Excepto que os Stall não parecem ter passado - percebe-se quando Edie (Maria Bello) sugere ao marido, Tom (Viggo Mortensen), que nunca viveram a adolescência -, excepto que a pequena cidade de Millbrook parece tão idilicamente americana que soa a construção.
E é construção: David Cronenberg filmou no Canadá, o que insinua uma espécie de desfasamento. "Alguém me disse um dia que os meus filmes são perturbantes para um americano. As ruas parecem iguais às das cidades americanas mas não totalmente, as pessoas parecem-se com os americanos mas não totalmente", explicou.
E na pacatez de um diner, cafeteria típica da paisagem americana, que parece saído de uma pintura de Edward Hopper (o filme tem a luz e a paleta dos seus quadros), uma tentativa de assalto irá desenterrar as origens da violência numa família até então tranquila. Naturalmente, vai haver confronto - mas também reconhecimento e fascínio. O filme vai mostrar como a violência, em escalada, contamina uma família, de forma inescapável.
Não é só por isso que se pode falar de A History of Violence como um filme sob o signo da contaminação, é também porque, trabalhando no quadro "normalizador" da indústria de Hollywood, Cronenberg contamina o filme de referências mais ou menos oblíquas às obsessões do seu cinema, sobretudo em termos figurativos: desfigurações, uma certa plasticidade quase mutante dos corpos (coadjuvada pela estranheza física de Viggo Mortensen), algumas insinuações de gore.

Um "clássico"Para lá das linhas temáticas que se podem identificar como percorrendo a filmografia cronenbergiana - metamorfose, paranóia, questão identitária, a pulsão sexual da violência ("há sempre uma componente sexual na violência e vice-versa", dizia ontem Cronenberg, e isso é explicitado no filme, numa sequência de sexo entre o casal Mortensen-Bello que evoca Crash) -, A History of Violence é um filme "clássico", entendendo-se aqui como clássico o mesmo sentido que se aplica a Clint Eastwood. Isto é, um filme inscrito no interior de um género - neste caso, o thriller - e com a eloquência - mesmo que aqui controlada, mais subterrânea - de um épico.
Mas onde Eastwood afronta as linhas de sombra da América com uma serenidade crepuscular, Cronenberg fá-lo, num terreno que lhe é pouco habitual, o do drama familiar, permitindo-se alguma ironia - foi por isso que houve risos durante a projecção de A History of Violence -, o que tem um efeito inquietante. E quando ontem lhe disseram que houve aplausos e gargalhadas na sessão de imprensa, o cineasta concluiu que esse é o fascínio que a violência tem sobre nós. "A questão que têm de perguntar é: o que é que faz com que ela seja tão atraente?"

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