O passado tão presente

sta semana fomos brindados com várias imagens televisivas de manifestações estudantis em Santiago do Chile. Quantas centenas de manifestações semelhantes àquelas não ocorreram no mundo durante esta semana? O Chile tem um valor mediático e político único. E como único é tratado. O golpe militar de Pinochet e a morte de Allende deram ao Chile um peso emocional absolutamente diverso. Veja-se por exemplo o destaque que é dado, em Espanha, à recente publicação do livro sobre Allende da autoria do filósofo e historiador chileno Víctor Farías, intitulado Salvador Allende: contra los judíos, los homosexuales y otros "degenerados". Em causa não está tanto aquilo que Víctor Farias revelou ou seja o conteúdo fortemente anti-semita, racista e homofóbico da tese de licenciatura em Medicina de Allende. Aliás tendo Allende escrito a sua tese nos anos 30, limitou-se a seguir o politicamente correcto progressista da época que era claramente de pendor eugenista, anti-semita e homofóbico. Mas como vivemos numa espécie de revisionismo místico do passado, tem-se como adquirido que as personagens que, como Allende, se associam ao Bem sempre pensaram como nós. O ex-líbris desta descontextualização das pessoas do seu tempo é esse absurdo rosário de desculpas que é suposto andar-se a pedir pelo mundo por causa do tráfico de escravos e das discriminações sexuais e raciais nos séculos passados. O reverso destes ímpetos revisionistas em relação ao passado é a cegueira perante o presente. E o presente é, por exemplo, em Portugal, tribunais que privilegiam sobre tudo e todos os laços biológicos e acham que cumprem o seu papel quando entregam uma criança a um pai toxicodependente e a uma avó que, durante anos, nunca se preocupara com ela e apenas a fora buscar para mais facilmente obter apoios sociais. Ou, para voltarmos ao caso chileno, a forma como alguns países, entre os quais se conta a Espanha, têm exorcizado os seus fantasmas internos na figura de Pinochet.
São directas as responsabilidades do general na morte e no desaparecimento de cidadãos chilenos e estrangeiros. Mas não deixa de ser perturbante constatar que os espanhóis que se arrebatam com a possibilidade de sentarem o verdugo chileno num tribunal por causa da morte do espanhol Carmelo Soria, não só optaram por não remexer no seu passado da guerra civil e da ditadura para não reabrirem velhas feridas - e note-se que não lhes faltavam nem criminosos de guerra nem carrascos - como amnistiaram os mais hediondos crimes praticados no seu próprio território nos anos 70. Ou seja nos mesmos anos em que, no Chile, o cidadão espanhol e funcionário da ONU Carmelo Soria foi torturado e executado pela polícia de Pinochet; em Espanha, José Humberto Fonz Escobedo, Jorge Juan García Carneiro e Fernando Quiroga Veina foram raptados e torturados até à morte. Quem os interrogou não sujou pela primeira vez as mão com sangue ao arrancar-lhes os olhos com chaves de parafusos. Os carrascos de José Humberto Fonz Escobedo, Jorge Juan García Carneiro e Fernando Quiroga Veina já tinham praticados outros crimes antes desse Março de 1973 e praticaram outros depois. Em nome da reconciliação, a Espanha aministiou os membros da ETA que mataram os três jovens que tinham ido a França ver o Último Tango em Paris, proibido na Espanha de então, e que no regresso se cruzaram com um comando da ETA na localidade francesa de Saint Jean de Luz. Comando esse que entendeu que eles faziam parte das forças de segurança espanholas e que os torturou com vista à obtenção de informações.
Mais de duas décadas depois destas mortes, Coral Rodríguez, militante do PSE e sobrinha de Humberto Fonz Escobedo, animada com o zelo que a justiça espanhola colocava na perseguição aos autores morais e materiais da morte, no Chile, de Carmelo Soria (zelo esse que levou, em 2004, o Estado chileno a fazer um acordo com a família de Carmelo Soria) resolveu contactar o juiz Baltasar Garzón, o Governo basco e os alegados autores dos crimes, dos quais pelo menos um tem actualmente uma vida absolutamente integrada na sociedade espanhola. Coral Rodríguez e as famílias dos três jovens não pretendem levar ninguém a tribunal. Não querem indemnizações. Querem apenas que lhes digam onde estão os cadáveres de José Humberto Fonz Escobedo, Jorge Juan García Carneiro e Fernando Quiroga Veina para os poderem enterrar. Até agora não obtiveram qualquer resposta.
Se José Humberto Fonz Escobedo, Jorge Juan García Carneiro e Fernando Quiroga Veina tivessem sido assassinados no Chile não só o interesse mediático pelo seu calvário ser muito maior, como seria incomensuravelmente maior a pressão da opinião pública e muito mais fácil seria também à justica espanhola e francesa (os assassínios ocorreram em França e é provavelmente em França que se encontram os cadáveres) exigirem que se apurasse a verdade.
Desconheço se o livro de Víctor Farías vais ser traduzido para português. Mas, a avaliar pelo caso espanhol, a ideia de que este livro configura uma espécie de ofensa à memória de Allende sobrepõe-se a outras bem mais importantes questões como o questionar do eco que o nazismo e o eugenismo tiveram e têm na América Latina e muito particularmente a influência que os nazis tiveram e têm entre os dirigentes chilenos. Os documentos coligidos por Víctor Farías que é também autor de Los nazis en Chile apontam para um dado que não pode ser escamoteado: a protecção dada pelos sucessivos governos do Chile e pelo Supremo Tribunal daquele país aos nazis que ali começaram a chegar nos anos 50 não foi interrompida durante os anos de Allende. A recusa de Allende em ponderar a extradição de Walther Rauff, apesar de saber que este colaborador de Eichmann fora o responsável directo pela morte de milhares de judeus em camiões transformados em câmaras de gás ou a indiferença do seu Governo pelo que se passava na Colonia Dignidad são o prolongamento da atitude dos anteriores governos face aos nazis que se tinham refugiado no Chile. Atitude essa que Pinochet acentuaria - após o golpe militar, Rauff colabora activamente com as forças de segurança chilenas e para a Colónia Dignidad, criada e dirigida por Paul Shaefer que fugira da Alemanha acusado de abusos sexuais contra menores, foram levados vários opositores do regime de Pinochet. E não se pode dizer que a democracia tenha alterado substancialmente esta bonomia chilena face aos nazis. Conforme declarou Víctor Farías numa entrevista ao jornal chileno El Mercurio de Valparaíso: "As organizações nazis na América Latina controlam mais de duzentas e cinquenta grandes empresas. E no Chile dá-se o paradoxo dos últimos sete Presidentes não terem feito praticamente nada contra a Colonia Dignidad. O MIR [Movimento de Izquierda Revolucionaria que durante os governos de Allende promoveu intensamente ocupações de fazendas, edifícios e espaços urbanos] nem sequer arriscou uma ocupação do terreno."
Que o passado sirva para emendar o presente. \uE04Aornalista

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