Torne-se perito

Os rostos do IV Governo Provisório

Aceitaram fazer parte de um Executivo que tomou nas mãos o destino de um país em pleno processo revolucionário. Alguns acabaram por abandonar as suas funções ministeriais, em ruptura com as decisões tomadas, outros transitaram para o V Governo Provisório. O PÚBLICO procurou saber qual o paradeiro dos homens que protagonizaram e testemunharam um dos períodos mais controversos da história da democracia portuguesa e que organizaram e viveram, com sentimentos divergentes, as primeiras eleições livres. Celebram-se hoje 30 anos sobre o dia em que os portugueses aguardaram, durante horas e horas de ansiedade passadas em enormes filas, para votar para a Assembleia Constituinte. Por Maria José Oliveira

tomada de posse aconteceu precisamente um mês antes das primeiras eleições democráticas realizadas em Portugal, a 25 de Abril de 1975. Quando, após o golpe militar de 11 de Março, o primeiro-ministro, então brigadeiro Vasco Gonçalves, recolheu o consenso do Movimento das Forças Armadas (MFA) para formar o IV Governo Provisório, assistiu-se a uma reestruturação pautada por um aumento de cargos governamentais e pela reentrada do MDP-CDE, que já integrara o I Governo Provisório. Comprimiram-se ao longo de quase cinco meses (de 25 de Março a 8 de Agosto, data da tomada de posse do V Governo Provisório) alguns dos momentos históricos mais conturbados (e controversos) desse ano: o impulso (movido pelo 11 de Março) do processo das nacionalizações, as eleições para Assembleia Constituinte, o fomento do plano da Reforma Agrária, o eclodir do conflito entre trabalhadores e direcção no jornal República, as dissidências (em Julho) do PS e do PPD.
Constituído por 20 ministros, 32 secretários de Estado (entre os quais se encontravam o Presidente da República, Jorge Sampaio, então secretário de Estado da Cooperação Externa, Carlos Carvalhas, secretário de Estado do Trabalho, e Vasco Graça Moura, da Segurança Social) e oito subsecretários de Estado, o IV Governo Provisório integrava dirigentes dos principais partidos do espectro político da época (PCP, PS, PPD e MDP-CDE), militares e civis, estes últimos então apontados como "independentes". A distribuição de títulos ministeriais aos militantes partidários foi mais ou menos equitativa: Álvaro Cunhal e Veiga de Oliveira (PCP), Mário Soares e Salgado Zenha (PS), Joaquim Magalhães Mota e Jorge Sá Borges (PPD) e Francisco Pereira de Moura (MDP-CDE). "Considero este governo um governo de campanha, constituído por verdadeiros militantes e combatentes da luta pelo progresso e bem-estar do povo português", discursou Vasco Gonçalves na cerimónia da tomada de posse.
Em jeito de reconstituição do elenco governamental do IV Governo Provisório, o PÚBLICO falou com alguns dos antigos ministros, procurando saber quais a suas actuais funções e instando-os a fazer um exercício de rememoração sobre aquele período.
Daquele painel de governantes já faleceram Ernesto Melo Antunes (ministro dos Negócios Estrangeiros), Francisco Pereira de Moura (ministro sem pasta), Silvano Ribeiro (ministro da Defesa), José Augusto Fernandes (ministro do Equipamento Social e do Ambiente) e Francisco Salgado Zenha (ministro da Justiça). O PÚBLICO tentou contactar ao longo de duas semanas Fernando Oliveira Baptista (ministro da Agricultura), mas não obteve qualquer resposta deste actual professor do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa. E José Emílio da Silva, então ministro da Educação e da Cultura, declinou a proposta para conversar sobre o assunto. O PÚBLICO ainda tentou fazer algumas perguntas a Mário Soares (ministro sem pasta), na passada semana, após a apresentação de um livro na Assembleia da República, mas este disse não ter tempo. Álvaro Cunhal encontra-se incontactável por motivos de saúde.
Era um governo
de ficção científica
JOAQUIM JORGE MAGALHÃES MOTA
Ministro sem pasta
68 anos
ADVOGADO EM LISBOA

É um dos fundadores do PPD (desfiliou-se em 79 e tornou-se membro da Associação Social Democrata Independente) e recorda que o seu partido abandonou o IV Governo Provisório (uma semana depois do PS, em Julho) pelo "não cumprimento de uma série de condições exigidas". "Era um governo de ficção científica porque quem funcionava mesmo era a Assembleia do MFA e o Conselho dos Vinte". Coordenador da Comissão Instaladora para a Assembleia Constituinte, Magalhães Mota assume hoje que estava "mais empenhado" nestas primeiras eleições democráticas do que no exercício do seu cargo ministerial. "A minha função nesse governo foi assegurar a instalação da Constituinte, já que quando começou a campanha eleitoral muitas pessoas, ligadas à linha vanguardista do MFA, tomaram consciência de que seriam derrotadas". "Tínhamos a certeza que a linha extrema seria derrotada e quem dizia que os portugueses não estavam preparados para as eleições utilizavam um argumento salazarista". .

Uma semana desse período vale hoje por anos
MÁRIO LUÍS DA SILVA MURTEIRA
Ministro para o Planeamento e Coordenação Económica)
72 anos
PROFESSOR JUBILADO DE ECONOMIA
NO ISCTE, EM LISBOA

Foi ministro em três governos provisórios (I, IV e V). Convidado para o IV Governo Provisório quando ocupava o cargo de vice-governador do Banco de Portugal, diz que o período "instável" vivido em Portugal em 1975 é "dificilmente compreendido por quem não o viveu". Numa só frase tenta explicar os conturbados dias desse ano: "Uma semana desse período vale hoje por anos". Mas, aponta, após o 11 de Março, acabou o "clima festivo" e assistiu-se ao surgimento de uma "atmosfera tensa". A partir de Julho, acrescenta, "todos os interesses da sociedade que se opunham à revolução começam a ganhar de novo terreno". Quando foi destituído o V Governo regressou à docência e em 76 filiou-se na União da Esquerda para a Democracia Socialista (UEDS). Nos anos 80 e 90, viajou sem descanso em missões de assistência técnica sob a tutela das Nações Unidas. Tem vários livros publicados, entre os quais se destaca um volume de memórias, titulado "O economista acidental (e voador frequente)".

Vivi esse dia com uma grande alegria
JOSÉ JOAQUIM FRAGOSO
Ministro das Finanças. 76 anos.
ADMINISTRADOR EM BANCOS E SEGURADORAS EM MOÇAMBIQUE E NA GUINÉ-BISSAU

Foi activista do MUD - Juvenil, apoiou as candidaturas de Norton de Matos, Ruy Luís Gomes e Humberto Delgado. Foi por este passado de resistência que José Joaquim Fragoso aceitou o convite de Vasco Gonçalves para tutelar a pasta das Finanças: "Foi pela fidelidade a esse passado", diz, comovido, frisando o seu regozijo por "não ter ficado conotado como político nem como homem público". Relembrar 1975 é um exercício um tanto ou quanto doloroso para este ex-governante. Que, tentando soltar as palavras que lhe embargam a voz, recorda o dia das eleições para a Constituinte: "Vivi esse dia com uma grande alegria". No IV Governo Provisório, teve uma "grande preocupação": "Que as empresas continuassem a funcionar e que o sistema não entrasse em colapso". Fazê-lo, conta, implicava uma "aplicação racional dos recursos". Ou seja, "existiam créditos para a aplicação produtiva, mas não para os salários". Daquele período de quase cinco meses, José Fragoso aponta as muitas "situações insólitas" que aconteceram após o 11 de Março e o "irrealismo de algumas propostas".

As nacionalizações eram indispensáveis
JOÃO CARDONA GOMES CRAVINHO
Ministro da Indústria
68 anos
DEPUTADO DO PS

É com um indisfarçável ânimo que o ex-ministro socialista (tutelou a pasta do Planeamento e Equipamento Social no XIII Governo Constitucional) fala sobre as eleições para a Constituinte. Ele, que testemunhou de perto, a "grande vontade em utilizar as instituições democráticas" e que lembra as "enormes filas de gente no momento de abertura das urnas". Um pormenor: "Naquele dia as pessoas vestiram os seus melhores fatos, como se quisessem solenizar o momento". Titular da pasta da Indústria, Cravinho sublinha que "assinou e aprovou" as nacionalizações, acrescentando que não tem "problemas nenhuns" em relação a esta matéria. Isto porque, defende, foram elas que sustentaram o Estado durante cerca de duas décadas. "Eram indispensáveis porque a alternativa seria o Estado sustentar os privados". Foram as nacionalizações de 74/75 que possibilitaram o nascimento dos grandes grupos económicos privados que hoje existem, aponta. "Era a única saída", diz, "e curiosamente quando se anunciou a nacionalização da banca a primeira grande manifestação popular de apoio veio do PPD e não do PCP, como se esperava". Depois de sair estive três meses desempregado
JOSÉ DA SILVA LOPES
Ministro do Comércio Externo. 72 anos
PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO MONTEPIO GERAL

Foi ministro das Finanças no II e III Governos Provisórios, mas não quis continuar a tutelar esta pasta: "A seguir às nacionalizações, quando se nomearam comissões de gestão para a banca, percebi que não era eu quem mandava, mas sim os sindicatos". Politicamente próximo do PS, foi nomeado ministro do Comércio Externo e tutelava igualmente o Turismo. Relembra a "situação complicada" que enfrentou diante de empresas "com muitas dificuldades" e foi "criticado" por não nacionalizar o comércio externo. "Teria sido um desastre se o tivesse feito". Criou uma sobretaxa aplicada às importações, com efeitos proteccionistas - "não era um boa solução, mas era a solução para aquele momento" - mas sentiu-se "marginalizado". "Não participava nas reuniões do Conselho de Ministros", alude. "A minha ligação com o governo era puramente técnica". Por isso, quando o PS saiu, Silva Lopes pediu, no dia imediatamente a seguir, a sua demissão do cargo. "Estive três meses desempregado e quando surgiu o VI Governo fui convidado para governador do Banco de Portugal [até 1980]".

O país passava-me pelas mãos todos os dias
JOSÉ INÁCIO DA COSTA MARTINS
Major da Força Aérea,
ministro do Trabalho
66 anos
REFORMADO DA FORÇA AÉREA DESDE 2002. PROPRIETÁRIO DA EMPRESA DE LOTEAMENTOS COM URBANIZAÇÕES "COLINA VERDE"

Integrou o II, III, IV e IV Governos Provisórios. Sempre como titular do Ministério do Trabalho. Ficou conhecido como o ministro do Dia do Trabalho ("um dia de salário para a nação") e chegou a ser acusado de se ter apropriado desse dinheiro. Admite que é "um bocado difícil" falar sobre o IV Governo, porque, argumenta, "foi um governo fulcral e quando houve a ruptura com o PS começou a ser preparado o 25 de Novembro, cuja história ainda não está feita". "O país passava-me pelas mãos todos os dias", repete ao longo da conversa com o PÚBLICO. Sublinha que "é falso" que a actuação dos militares do MFA tenham sido determinadas pelos partidos - "o MFA não era uma força política, era uma manta de retalhos" -, mas acrescenta que, naquela altura, faltava "um centro de poder definido que guiasse o país, que mantivesse a ordem". Houve ou não excessos? "Houve arbitrariedades e injustiças como há hoje, mas naquele contexto eram criadas por provocadores que queriam instalar um clima de descontentamento da população em relação à situação política". Foi uma campanha
eleitoral muito dura
JORGE DE CARVALHO SÁ BORGES
Ministro dos Assuntos Sociais. 72 anos
REFORMADO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE EDITORES E LIVREIROS DESDE 1998

Fundador do PPD (desfiliou-se em 76), sócio fundador da SEDES, participou na campanha da candidatura do General Humberto Delgado, foi preso pela PIDE em 63 e 67 e pertencia aos titulados "católicos progressistas". Jorge de Sá Borges chegou a ser eleito, pelo círculo de Bragança, para a Constituinte, mas abdicou das funções parlamentares quando foi nomeado ministro do IV Governo Provisório. "Foi uma campanha muito dura, com muitos boicotes aos comícios do PPD, e aqueles que apelavam ao voto em branco, argumentando que as pessoas não estavam preparadas, faziam o mesmo que se fazia no tempo do Estado Novo". Sobre o IV Governo, este advogado não tem dúvidas em adjectivá-lo de "irrelevante". "Eram os militares que resolviam tudo, não tínhamos nenhum poder efectivo. Uma das coisas que me levou para esse governo foi a tentativa de fortalecer a posição do PPD, que, nessa altura, era tido como a direita que restava do Estado Novo, coisa que não era".

Realizar as eleições em paz foi notável
ANTÓNIO CARLOS MAGALHÃES
ARNAO METELLO
Major de engenharia, ministro da Administração Interna. 66 anos
ENGENHEIRO CIVIL NO LABORATÓRIO DE ENGENHARIA DE MACAU

Enquanto ministro do IV Governo Provisório, sempre defendeu a realização das eleições para a Constituinte, mas assume que naquela "primeira experiência" de um sistema eleitoral "aberto e livre" surgiram "sensibilidades diferentes". Foi a partir do seu ministério que se criaram as condições para avançar "tecnicamente" com as eleições na data prevista, pelo que Arnao Metello reivindica para si a "responsabilidade da liberdade e da possibilidade de se processar o acto eleitoral". "Foi um dia de muita ansiedade e preocupação pelos resultados", afirma. "Realizá-las em paz foi notável", acrescenta, " e sentimos [MFA] que tínhamos cumprido uma promessa, a de devolver o poder ao povo". Sobre o IV Governo, evoca a "tentativa de gestão honesta e apaixonada" que imprimiu à sua acção política, mas não esconde que "todos os militares do MFA eram alvos preferenciais dos partidos". Uns eram mais influenciáveis, outros nem tanto, advoga. "No fim de contas", explica, "o MFA reflectia o que se passava no espectro político da altura".

No caso República senti-me manipulado pela esquerdaJORGE CORREIA JESUÍNO
Capitão de fragata, ministro da Comunicação Social. 71 anos
PROFESSOR JUBILADO DE GESTÃO NO ISCTE. COORDENADOR DE TESES DE MESTRADO NO ISCTE E NA UNIVERSIDADE ABERTA

"Estávamos a cumprir uma missão militar". É desta forma que Correia Jesuíno explica o facto de não se ter demitido do IV Governo provisório, apesar de ter "pensado várias vezes nisso". O "jogo" entre as forças partidárias "era muito grande" e a "desunião entre o poder político e as Forças Armadas, que reexaminavam sempre as decisões governamentais, provocou grandes problemas". Durante a campanha para a Constituinte, foi dos que defendeu, juntamente com muitos militares do MFA, o voto em branco. Hoje admite a posição errática: "Tínhamos um pouco a ideia que as pessoas não estavam preparadas para as eleições, que era preciso mais tempo". Mas ressalva: "Não se tratava de uma manobra para o MFA estar mais agarrado ao poder". "Penso que todos nós éramos muitas vezes ingénuos. Eu pelo menos era. No caso República, por exemplo, senti-me muito manipulado pela esquerda". Com a saída do PS e do PPD, acrescenta, o IV Governo "teve a percepção que o tapete saía dos nossos pés" e aprofundou-se o "ambiente conspirativo dentro das Forças Armadas".
Havia grandes ilusões totalmente infundamentadas
ÁLVARO AUGUSTO VEIGA DE OLIVEIRA
Ministro dos Transportes e Comunicações
76 anos
REFORMADO DESDE 1996, TRABALHOU COMO PROJECTISTA DE ESTRUTURAS DE EDIFÍCIOS E PONTES. HOJE, LÊ E ESCREVE [AUTOR DO ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO "AS CERCAS"]

Tomou posse quando era ainda funcionário do PCP (saiu integrado no famoso "grupo dos seis" e filiou-se no PS em 99). Em resposta a questões enviadas por correio electrónico, afirma que participou em diversas acções da campanha eleitoral para a Constituinte, mas o facto de integrar o elenco governamental limitou-o "severamente". Defende que sobre estas eleições "havia grandes ilusões totalmente infudamentadas", salientando que "os resultados eleitorais constituíram a primeira ajuda séria para a recuperação de um julgamento equilibrado". A uma distância de 30 anos, Veiga de Oliveira escreve que "em períodos revolucionários, os excessos são de regra, em todos os tempos e em todos os lugares. Para mim é duvidoso que dos protagonistas da altura houvesse alguém capaz de prever o que se iria passar, com a simples antecipação de trinta dias e alguma segurança".

Todo o "Verão quente" é caracterizado pelo excessoANTÓNIO ALMEIDA SANTOS
Ministro da Coordenação Interterritorial
79 anos. Advogado
PRESIDENTE DO PS.
MEMBRO DO CONSELHO DE ESTADO

Era um "independente" no IV Governo Provisório. Mas isto não passava de uma espécie de denominação fictícia: "Não me tinha filiado no PS para o partido não perder um ministro". Tutelou a mesma pasta no I, II, III e IV Governos Provisórios - um ministério instituído para coordenar os territórios em vias de descolonização. Relativamente à Constituinte, o ex-presidente da Assembleia da República lembra que o "argumento real" daqueles que se opunham às eleições associava-se ao "desejo de permanecer por mais tempo no poder". Mas é ao então Presidente da República, General Costa Gomes, que Almeida Santos atribui um papel decisivo para a concretização das primeiras eleições livres: "Quem sem pre defendeu as eleições foi o Presidente. Terá sido ele o garante principal da realização das eleições". Sobre o IV Governo, Almeida Santos recorda que redigia "leis em catadupa durante o Conselho de Ministros" e que o "período delirante" vivido em 75 assemelhava-se a uma "perfeita anarquia". "Todo o "Verão quente" é caracterizado pela palavra excesso". Poucos dias após a saída do PS, pediu a demissão: "Escrevi uma carta a dizer que não aguentava a passada da revolução".

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