Torne-se perito

O cardeal Panzer que defende com mão de ferro a doutrina católica tornou-se Bento XVI

Joseph Ratzinger nasceu em 1927, numa família de agricultores. Durante o Concílio Vaticano II atacou o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cargo que assumiria, duas décadas depois, a convite de Karol Wojtyla, o seu antecessor como Papa. Na missa a que presidiu antes do início do conclave defendeu a ortodoxia doutrinal contra a mudança. Por Bárbara Wong

Festejou o seu 78º aniversário no passado sábado, mas a grande prenda de anos recebeu-a ontem. Pelo menos dois terços dos cardeais reunidos na Capela Sistina, na Basílica de São Pedro, no Vaticano, escolheram o seu decano para suceder a João Paulo II. O cardeal alemão Joseph Ratzinger adoptou o nome de Bento XVI.O cardeal Panzer (nome dos tanques alemães da II Guerra Mundial) - alcunha que lhe foi posta por ser o grande guardião da ortodoxia católica, enquanto número dois do Vaticano, durante o pontificado de Karol Wojtyla - nasceu em Marktl am Inn, na diocese de Passau, Baviera, em 1927, numa família de agricultores muito devotos. O pai era polícia, mas demitir-se-ia devido às suas convicções antinazis.
Quando jovem, entrou na Juventude Hitleriana (era orbigatório) e foi recrutado para exército em 1943. No ano seguinte, desertou, o que então era punido com a pena de morte. No final da guerra sai convencido de que os católicos sobreviveram e triunfaram graças à fé que professam.
Estuda filosofia e teologia e aos 24 anos é ordenado padre, lado a lado com o seu irmão Georg, em Freising, na Baviera. A sua missão é ensinar: foi professor em Bona, Münster, Tubinga e Rogensburg. Leccionou até 1969, ano em que se arrepia com as acções dos movimentos estudantis e abandona o ensino.
O jovem Ratzinger dá nas vistas durante o Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965. É visto como um teólogo de vanguarda. Segundo o jornal espanhol El País, na altura o padre alemão escreve das palavras mais críticas do concílio, quando se refere à Congregação para a Doutrina da Fé (organismo que sucedeu à Inquisição e que tem como função zelar pela ortodoxia da transmissão da fé católica), dizendo que esta era "fonte de escândalo" para o mundo, atacando o prefeito da instituição, o italiano Alfredo Ottaviani. Quando, em 1990, se cumpre o centenário do nascimento de Ottaviani, Ratzinger tece-lhe um enorme elogio por ter mantido "sem medo, o escudo da fé e a espada do espírito".

"O cristão é umapessoa simples"
É no tempo do Vaticano II que Ratzinger ganha a fama de liberal e reformista, porque defende a descentralização e a autonomia das conferências episcopais. Mas ao longo dos anos o liberal foi dando lugar ao conservador.
A grande mudança de discurso é sentida quando é ordenado arcebispo de Munique, em Março de 1977, por Paulo VI, o mesmo Papa que três meses depois o nomeia cardeal, abrindo-lhe as portas dos conclaves que elegem João Paulo I, João Paulo II e aquele onde foi escolhido. Tem então 50 anos.
Em 1979 declara que "o cristão é uma pessoa simples", por isso, "os bispos devem defender esta gente sincera dos intelectuais". Uma frase que guia a sua acção enquanto prefeito da mesma congregação que atacara durante o Concílio Vaticano II, cargo que assume em 1981, a convite de João Paulo II. Ratzinger vai então castigar os defensores da "teologia da libertação", como o brasileiro Leonardo Boff, e os renovadores, como o suíço Hans Kung, o alemão Eugen Drewermann, o belga Edward Schillebeck... O cardeal alemão também se revela incómodo para outras correntes, como os integristas do monsenhor francês Lefèbvre ou mesmo a Opus Dei.

"Fora da Igreja Católicanão há salvação"
Com João Paulo II torna-se num defensor do poder de Roma. A sua maior crítica às igrejas evangélicas é não terem um chefe, um interlocutor com quem negociar. O verdadeiro catolicismo preserva-se na Praça de São Pedro, afirma.
O "não" parece ser uma palavra querida a Ratzinger, que nos últimos anos a pronunciou contra o sacerdócio feminino, o casamento dos padres, o casamento gay, o comunismo e até contra a música rock, que acredita ser veículo de mensagens satânicas. Para ele "fora da Igreja Católica não há salvação".
O "sim" é dito pela defesa da vida, mas também pela pena de morte - no livro-entrevista O Sal da Terra: O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milénio, publicado em 1996, o cardeal alemão escreve que, no que diz respeito à pena de morte, "pune-se alguém que é culpado de crimes que se provou serem muito graves, e que também representa um perigo para a paz social". Mas que "no caso do aborto dá-se a pena de morte a alguém que é absolutamente inocente".
Desde 2002 que é decano do Colégio Cardinalício, ou seja, o mais antigo dos cardeais. Onze anos antes teve um derrame cerebral que lhe afectou a vista. As décadas de lutas teológicas e de polémicas - muitos acusam-no de ser a razão de a teologia da Igreja estar estagnada -- têm-no cansado e Ratzinger apresentou a João Paulo II, pelo menos duas vezes, pedidos para resignar do cargo de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Mas nunca recebeu resposta.
Na missa que antecedeu o conclave, no início da semana, Ratzinger, que presidiu à cerimónia, voltou a defender a ortodoxia doutrinal, contra a "ditadura do relativismo".
Uma ideia que seria querida a João Paulo II - mas, ao contrário do seu antecessor, Bento XVI não tem o mesmo carisma. É tímido, embora afável e cordial. Toca piano e é amante da música de Mozart.
No livro-entrevista reflecte: "Quantos caminhos há para Deus? Tantos quanto há pessoas. Porque mesmo dentro da mesma fé o caminho de cada um é muito pessoal."

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