Os Papas do século XX

O século XX viu oito Papas, cada um com o seu percurso e estilo, cada um com as suas limitações, dentro e fora da Igreja Católica, uns com mais sorte, outros de todo sem ela. Desde logo os que atravessaram as duas guerras mundiais, e ainda a guerra fria, e o que menos tempo esteve na cadeira de São Pedro, João Paulo I. Todos porém tiveram em comum a entrega ao cargo e aos católicos, e sentiram nalgum momento a necessidade de fazer mudanças na milenarmente conservadora e pesada instituição. Por Fernando Sousa

Pio X (1903-1914)O conservador
O primeiro Papa eleito no século XX, Pio X, ficou para a história por uma meia dúzia de reformas que o seu tempo exigia e ele teve a coragem de tomar. Mas alguns grandes desafios ficaram por resolver. Giuseppe Sarto começou a carreira religiosa como padre na região de Veneza, onde ganhou um estilo rústico que nunca mais perdeu. Sucessivamente bispo de Mântua, patriarca de Veneza e, por fim, cardeal, foi eleito para a chefia da Igreja Católica em 1903. Os biógrafos creditam-lhe atitudes ousadas, atendendo ao período tumultuoso do seu pontificado, como o acesso das crianças à eucaristia e a comunhão frequente dos fiéis, e as reformas da música sacra, do breviário e do direito canónico. Mas já o acusam de ter adoptado atitudes radicais relativamente à democracia cristã e ao modernismo, aparentemente empurrado pelo anticlericalismo, criando anticorpos no mundo intelectual católico. A última prova do seu pontificado foi, em 1914, algumas semanas antes da sua morte, a declaração de guerra contra a qual tanto trabalhara.

Bento XV (1914-1922)
O alinhado
Os biógrafos de Bento XV referem-se-lhe como o Papa que falhou nas tentativas de pôr termo à I Guerra Mundial devido à sua visão muito própria do futuro da Europa. Enquanto chefe da Igreja Católica, Giacomo della Chiesa ajudou durante o conflito milhares de prisioneiros de guerra e refugiados, rezou mesmo missas nas trincheiras. Mas, ao tentar impedir o desmembramento do Império Austro-Húngaro, segundo ele um factor de equilíbrio europeu e um bastião católico, numa altura que a Revolução Russa de 1917 alastrava no terreno e nas ideias, levantou suspeitas sobre a sua neutralidade e deitou tudo a perder. Por causa disso, os vencedores puseram à parte os seus representantes na Conferência de Paz, em 1919. E pelos mesmos motivos a Santa Sé seria afastada da Sociedade das Nações. Porém, Bento XV viu a ressurreição da Polónia como país católico, abriu-se à democracia cristã e ao sindicalismo cristão, e separou a causa missionária das políticas coloniais.

Pio XI (1922-1939)
O político
Ambrósio Damiano Achille Ratti, eleito Papa em 1922, recebeu como herança um mundo saído de uma guerra e a caminhar para outra. Mas os traumas do conflito 1914-18 e os novos radicalismos não imobilizaram o pontífice, que se mostrou um homem de temperamento determinado. Nos 17 anos em que chefiou a Igreja, Pio XI foi um acérrimo defensor do matrimónio cristão e um apostado adversário da contracepção, deu um novo impulso às missões, apoiou a recentemente fundada Juventude Operária Católica, o primeiro organismo da chamada Acção Católica, fundou a Academia Pontifícia das Ciências, assinou concordatas com a Alemanha e a Áustria, ao mesmo tempo que condenava os regimes totalitários, todos os da altura, à direita e à esquerda, e assinou com o Governo de Mussolini o Tratado de Latrão que criou, em Roma, o Estado da Cidade do Vaticano, independente e neutral. Morreu em 10 de Fevereiro de 1939, a lutar contra a corrente de um inevitável novo conflito mundial.

Pio XII (1939-1958)
O equilibrista
O pontificado de Pio XII foi uma longa tentativa de equilíbrio num mundo quase sem pontos de apoio. Com o objectivo de não comprometer os católicos nos países invadidos e preservar a independência do Vaticano, o Papa Eugenio Pacelli manteve as relações diplomáticas com a Alemanha nazi e seus satélites, e moderou a Rádio Vaticano, que no início da guerra encorajara à resistência os países ocupados à resistência. A acção directa da Santa Sé sob diversas formas permitiu salvar largos milhares de vidas, mas o alegado silêncio do Papa face ao extermínio sistemático dos judeus ficou a pesar na história recente da Igreja. O equilibrismo político de Pio XII empalideceu assim coisas como a defesa que fez da democracia e do direito da mulher a aceder à vida pública, as investigações arqueológicas do que se pensa ser o túmulo de São Pedro, na cripta da Basílica de São Pedro, a reforma litúrgica ou o impulso aos estudos bíblicos, que aplanaram o caminho para o Concílio Ecuménico Vaticano II.

João XXIII (1958-1963)
O reformador
Quando Angelo Giuseppe Roncalli foi eleito Papa, em 1958, o comentário comum foi de que não seria mais do que um chefe de "transição". Tinha demasiada idade: 77 anos. De facto, o seu pontificado não teve mais de cinco anos. Mas foi o tempo suficiente para impressionar, pelo seu estilo sincero e simples, católicos e não católicos, intervir profundamente nos problemas do seu tempo através de uma notável obra pastoral, desde logo as encíclicas Mater et Magistra, sobre a justiça social, e Pacem in Terris, sobre a paz, ser acolhido, facto raro, por todos os regimes da altura e lançar o aggiornamento da Igreja Católica, com o Concílio Ecuménico Vaticano II, a assembleia de todos os bispos do mundo por ele inaugurada mas que seria concluída, devido à sua morte, pelo sucessor. Foi ainda João XXIII quem lançou as primeiras grandes pontes ecuménicas, convidando observadores de outras igrejas cristãs para a reunião da mudança e criando um secretariado para a unidade dos cristãos.

Paulo VI (1963-1078)
O polémico
Paulo VI foi o Papa que levou até ao fim o Concílio Ecuménico Vaticano II e pôs em prática as suas decisões, e o primeiro a sair pelo mundo fora, tendo visitado Jerusalém, Índia, ONU, Portugal (13 de Maio de 1967), Turquia, Suíça, Uganda, Filipinas, onde por pouco não morreu num atentado, e Austrália. Giovanni Battista Montini foi também o primeiro chefe da Igreja Católica a encontrar-se com o arcebispo da Cantuária (primaz dos anglicanos) e, em vários séculos, com o patriarca Atenágoras, líder espiritual da Igreja Ortodoxa. O seu pontificado ficou ainda marcado pela encíclica Humanae Vitae, produto de um mundo em mudança, inspiradora da actual moral sexual cristã, e alguns sermões e iniciativas polémicas, como quando recebeu no Vaticano os chefes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, Amílcar Cabral, da Guiné, Agostinho Neto, de Angola, e Marcelino dos Santos, de Moçambique. Muitos católicos referem-se-lhe como o Papa da modernidade.

João Paulo I (1978)
O efémero
Albino Luciani, o Papa João Paulo I, que escolheu o primeiro nome composto como homenagem aos dois imediatos antecessores, foi um dos chefes da Igreja Católica que menos tempo estiveram na cadeira de São Pedro: 33 dias. Eleito em 26 de Agosto de 1978, morreu a 28 de Setembro, aos 65 anos, devido a uma paragem cardíaca. A sua morte repentina suscita ainda hoje especulações, algumas atribuindo-a a uma conspiração. A sua saída repentina de cenário daria espaço a sectores conservadores empenhados em combater as tendências então emergentes que pediam uma renovação profunda.

João Paulo II (1978-2005)
O peregrino
João Paulo II foi o segundo Papa (descontando São Pedro, discípulo de Jesus) que mais tempo esteve à frente da Igreja Católica: 26 anos. Karol Wojtyla, o primeiro Papa polaco e o primeiro não italiano depois de 455 anos, foi também o que mais viajou (104 visitas pastorais a 133 países), o que mais cerimónias de beatificação e de canonização levou por diante (fez 1338 beatos e 482 santos), um dos que mais encíclicas (14) escreveu e o que mais fez pela reconciliação das igrejas cristãs e pela aproximação a outras religiões. Foi também, em aspectos essenciais, um dos mais conservadores. Mas nenhum como ele foi tão longe na denúncia dos desequilíbrios sociais e das injustiças. Daí os mais de quatro milhões de pessoas que atraiu ao seu funeral, o último dos seus recordes.

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