Três monarcas vistos pelos seus biógrafos

D. Afonso IV

Infante rebelde, rei bem aconselhadoLocal desconhecido, 1291; Lisboa, 1357
Autor: Bernardo Vasconcelos e Sousa
Não se sabe se Afonso IV era alto ou baixo, louro ou moreno, bonito ou feio. "Não arrisco nada sobre ele fisicamente. Não arrisco a cor do olhos", diz o historiador Bernardo Vasconcelos e Sousa, professor da Universidade Nova de Lisboa e que já presidiu à Torre do Tombo. "Não conhecemos retratos dos reis da primeira dinastia. Todas as representações são convencionais. O mais próximo, quando existem, são as estátuas dos túmulos. A de D. Afonso IV, que estava na Sé de Lisboa, desapareceu no terramoto de 1755."
Segundo Vasconcelos e Sousa, "a maior parte dos testemunhos que chegaram até hoje omitem por completo aquilo que chamamos vida privada". As crónicas reais são geralmente feitas mais de 100 anos depois da morte do rei e começam quando sobe ao trono. De Afonso IV sabe-se, no entanto, que foi um infante rebelde. "Os anos finais do reinado de D. Dinis são de guerra civil entre o pai e o herdeiro do trono, o futuro Afonso IV. Estou convencido que a origem do cognome o Bravo tem muito provavelmente a ver com a rebeldia enquanto infante."
D. Afonso IV era o único filho legítimo varão de D. Dinis e argumentava que o seu irmão bastardo, Afonso Sanches, o queria envenenar para ficar com o trono. "Na luta contra o pai, o infante rebelde assume o descontentamento da nobreza que lhe vê retirados privilégios", mas depois, quando o príncipe sobe ao trono em 1325, "tem uma acção política coerente com a do pai, de reforço do poder do rei e da coroa", diz o historiador.
D. Afonso IV é também o único rei da primeira dinastia que tem um projecto de expansão marítima. "Estou convicto que tem o primeiro projecto não concretizado de uma expansão além-mar, que passava nomeadamente pelo Norte de África e pelas Canárias."
Mas a imagem que perdurou de Afonso IV é a do mandante do assassínio de Inês de Castro, a amante do príncipe herdeiro e mãe de vários filhos bastardos de D. Pedro I - "Se não mandou matar, concordou com a ordem". A Castro, como era conhecida a Bela Inês, "era o símbolo de um "partido" com peso muito grande em Portugal, que no limite poderia vir a pôr em causa a transmissão da coroa para o herdeiro legítimo". O historiador não quer perpetuar a discussão entre bons e maus, dizendo apenas que D. Afonso IV "era um homem com luz própria, muito provavelmente muito bem aconselhado". E que os nobres que o rodeavam "não queriam ser secundarizados face aos Castro", nem ver o reino arrastado para as guerras entre a nobreza de Castela.

D. Maria II

Injusta fama de "despótica" Rio de Janeiro, 1819; Lisboa, 1853
Autora: Maria Fátima Bonifácio
Uma das novidades desta biografia é a utilização das duas dezenas de cartas entre D. Maria II e D. Pedro IV, entre pai e filha, que se guardam no Cartório da Casa Real, da Torre do Tombo. "São enviadas do Brasil ou do Porto, inéditas, e há desde cartas do pai a mandá-la estudar até algumas com interesse político, como as que se seguem ao célebre desembarque de D. Pedro IV no Norte de Portugal", explica Maria de Fátima Bonifácio, autora da biografia e investigadora do Instituto de Ciências Sociais.
O desembarque é a 7 de Julho, já depois da independência do Brasil, sendo que um mês depois já D. Pedro IV pensava em desistir de tudo: "Reflectem desalento e dúvida sobre o desenlace da causa liberal." Ao contrário da lenda que a história portuguesa tem divulgado, D. Pedro só se interessou verdadeiramente pela causa da filha depois de perder o Brasil. E a causa, diz a historiadora, "esteve várias vezes moribunda".
O futuro de D. Maria como rainha começou em 1826, no dia da morte do avô, D. João VI, tinha sete anos. O avô estava em Portugal, a neta no Brasil com o pai, D. Pedro IV, que abdicou em favor da filha porque preferiu a coroa imperial brasileira. Até à morte do avô, sabe-se pouco de D. Maria, que nasceu no Rio a 4 de Abril de 1819 e era princesa do Grão-Pará. Essa decisão do pai, que lhe deu uma coroa e a primeira carta constitucional do reino, atirou-a para o centro do conflito entre liberais (o lado do pai) e absolutistas (o lado do tio, D. Miguel, que usurpou a coroa), naquilo que resultaria numa guerra civil entre 1832 e 1834. D. Maria veio para a Europa em 1828, chegou a Londres com nove anos, onde foi recebida por Jorge IV como rainha. Mas só sobe ao trono em 1834, tinha 15 anos.
O reinado de D. Maria "foi permanentemente agitado e muito difícil", marcado pela controversa figura de Costa Cabral, nomeado duas vezes primeiro-ministro. "Era odiado e ela foi envolvida no mesmo manto de antipatia", diz Bonifácio, dando-lhe uma fama de "despótica" que durou até hoje. "Injusta", mas que deve ser lida à luz de Cabral ter sido, afinal, o primeiro primeiro-ministro da história de Portugal a completar uma legislatura. "Cabral conseguiu, com um partido disciplinado e coeso, dominar o Parlamento. Chegou a ser insinuado que havia uma relação menos própria entre os dois, mas não se passou nada."
Outras das fontes manuscritas consultadas pela historiadora são as cartas trocadas entre D. Maria II e a rainha Vitória de Inglaterra, a rainha mais importante da época, que estão no Arquivo Real de Windsor, em Inglaterra. "São 150 cartas de D. Maria para a rainha Vitória. Elas são primas direitas, escrevem-se em francês e depois de um tratamento inicial por "você" passam a tratar-se por "tu". D. Maria escrevia mal português e pessimamente em francês, porque teve uma educação deficiente."
Ao contrário de Vitória, D. Maria II adorava o tempo passado com os filhos - morreu ao décimo primeiro parto, numa agonia relatada à própria rainha de Inglaterra pela madrasta de D. Maria II, a imperatriz Amélia. "Não posso dizer que tenha descoberto um traço novo da sua personalidade. Mas se alguma coisa me surpreendeu foram as suas relações com o marido, o rei D. Fernando de Saxe-Coburgo, o rei artista. Ela assume nas cartas a Vitória que adorava aquele homem - e era recíproco. Achava que as mulheres só cumpriam o seu destino ao serem esposas e mães."

D. Pedro VO rei que fez um diário
Lisboa, 1837; Lisboa, 1861
Autora: Maria Filomena Mónica

O príncipe Alberto, marido da rainha Vitória de Inglaterra, foi uma espécie de "superego freudiano" do rei D. Pedro V, diz a historiadora Maria Filomena Mónica, autora da biografia dedicada ao filho de D. Maria II e de D. Fernando de Saxe-Coburgo. "Tinha pelo tio uma admiração sem fim e foi influenciado pela imagem que este lhe transmitiu da democracia representativa ideal -- o estádio supremo do sistema político ", explica a investigadora do Instituto de Ciências Sociais, que consultou a correspondência entre os dois guardada no Arquivo Real de Windsor. Mais misteriosa mas com certeza determinante é a figura do preceptor alemão Dietz, um provável católico influenciado pelo protestantismo. "A sua primeira língua foi o alemão. Era uma criança-prodígio que aos nove anos fazia redacções em latim. Tornou-se um homem pedante, muito culto e sério. No fundo, era um estrangeirado que tinha muito pouco a ver com a cultura portuguesa. Ele era um Saxe-Coburgo, não um Bragança, e ficava triste quando olhava para o país", comenta a historiadora. "Comecei por detestá-lo porque achei que um rei constitucional não devia ser tão intervencionista. Vim a descobrir que era um rei dilacerado. Tal como o príncipe Alberto era um ser relativamente frustrado, porque não podia intervir como queria. Todos os dias escrevia cartas aos ministros. Mas os objectivos eram louváveis: queria que o país enriquecesse, que se modernizasse e integrasse na Europa, queria dar um maior ênfase à educação."
Uma fonte directa rara para construir esta biografia foi a existência de um diário feito por D. Pedro V - "Tanto quanto sei é o único rei português que escreveu um, a um ritmo quotidiano nos primeiros anos do reinado". "Encheu seis livrinhos, onde mostra um desprezo total pelos políticos, misturado com a reflexão que faz das leituras estrangeiras", diz Mónica. Uma das mais presentes é O Antigo Regime e a Revolução, de Alexis de Tocqueville, lido no ano em que sai. No autor francês, "atrai-o a possibilidade de coexistirem na mesma sociedade valores aristocráticos e os novos valores liberais".
Uma das conclusões mais privadas desta biografia é que "o rei não gostava de sexo, ou era impotente ou virgem". Segundo o relatório da autópsia, a rainha D. Estefânia morreu virgem.
O rei, muito bonito, reinou apenas seis anos e morreu depois de ter bebido água inquinada de um poço em Vila Viçosa. Ele e mais dois infantes. Era muito amado pelo povo e houve um motim em Lisboa no dia de Natal. Isabel Salema

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