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A herança doutrinal do Papa Wojtyla (2)

São mais de 40 os volumes que reúnem os Ensinamentos de João Paulo II dos seus 26 anos e meio de pontificado. A partir de alguns dos documentos mais importantes do primeiro Papa polaco da história católica, o PÚBLICO apresenta neste espaço, desde ontem e até à próxima sexta-feira, alguns dos aspectos essenciais de um pensamento rico, diversificado e, por vezes, também muito polémico

OS PEDIDOS DE PERDÃOE A PURIFICAÇÃO DA MEMÓRIA
Não há um documento único sobre o tema, mas muitas alusões e referências do Papa aos erros históricos da Igreja Católica: as Cruzadas, a Inquisição, as perseguições aos judeus, as conversões forçadas dos índios, as feridas contra a dignidade da mulher, a escravatura, as rupturas entre católicos, ortodoxos, protestantes e anglicanos.
Em mais de cem ocasiões, João Paulo II quis ajudar à "purificação da memória" católica, pedindo perdão - muitas vezes em lugares simbólicos, como no Muro das Lamentações, em Jerusalém, em relação aos judeus - pelos actos condenáveis cometidos por católicos e pela Igreja ao longo dos séculos.
O primeiro dos actos maiores dessa vontade do Papa - contra o desejo de alguns responsáveis da Cúria Romana - foram a publicação, em 1998, de um documento da Comissão Teológica do Vaticano intitulado Nós recordamos - Uma reflexão sobre a "Shoah". O segundo concretizou-se a 12 de Março de 2000, no Vaticano, quando o Papa presidiu a uma liturgia especial dedicada ao pedido de perdão pelos erros da Igreja ao longo dos séculos.
O jornalista italiano Luigi Accattoli publicou um exaustivo estudo sobre os pedidos de perdão do Papa Wojtyla: Quando o Papa Pede Perdão (ed. Paulinas). Nele recenseava, já em 1997, 94 textos com esses pronunciamentos penitenciais.
O estudo de Accattoli começa por recordar os tempos em que não se pedia perdão e, depois, as iniciativas de João XXIII e Paulo VI para se reaproximarem dos judeus e dos protestantes. Foram estes antecessores que abriram o caminho para as iniciativas de João Paulo II sobre 21 temas diferentes: cruzadas, Inquisição, cisma do Oriente, divisão entre igrejas, Lutero, guerras religiosas, história do papado, judeus, islão e Hus, Calvino e Zuínglio são os que se relacionam com questões estritamente religiosas.
Há ainda os pedidos de perdão relativos à atitude da Igreja Católica para com as mulheres, Galileu, guerra e paz, povos indígenas, injustiças, ditaduras, integralismo religioso, mafia, racismo, Ruanda e tráfico de negros.

O ESPLENDOR DA FÉE DA VERDADE ABSOLUTA
Na sua décima encíclica (Outubro de 1993), o Papa fala d""O Esplendor da Verdade", dos fundamentos e do ensino moral da Bíblia. Dirigida apenas aos bispos e não a todos os fiéis e pessoas "de boa vontade", como era tradição desde o Papa João XXIII, a Veritatis Splendor diz que o papel dos teólogos é ensinar a doutrina da Igreja e não as suas ideias pessoais - três anos antes, num outro documento, o cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, dizia não haver lugar na Igreja para o "direito à dissensão".
Na encíclica, o Papa fala da questão da liberdade e da lei, da consciência e da verdade, e insiste - ao falar da moralidade dos actos - naquilo que é "intrinsecamente mau", citando um dos textos do Concílio Vaticano II: tudo "o que se opõe à vida", o que "viola a integridade da pessoa humana" e aquilo que "ofende a sua dignidade" ou as "condições degradantes de trabalho". Estes critérios incluem, entre outros, o genocídio, o aborto, as mutilações, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, o comércio de mulheres e jovens.
Ano e meio depois, em Março de 1995, o ensino moral continua com a encíclica Evangelium Vitae (O Evangelho da Vida). Na sua 11ª encíclica, o Papa centra-se nas actuais ameaças à vida humana e reforça a tese da abolição da pena de morte, uma tendência crescente que se regista "tanto na Igreja como na sociedade".
Verificando a "expansão de uma inquietante cultura de morte", condena os estados que pretendem "dispor da vida dos mais fracos e dos seres sem defesa", nomeadamente ao promulgarem leis permitem a eutanásia e o aborto. "Nunca é lícito conformar-se com" tais leis, afirma João Paulo II, "nem participar numa campanha de opinião a favor" delas ou aprová-las com o voto.
Dirigida também apenas aos bispos é a encíclica Fides et Ratio (A Fé e a Razão), publicada em Outubro de 1998. O Papa parte das perguntas fundamentais da existência - "Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? Que é que haverá para além desta vida?" - para afirmar que a fé e a razão se ajudam "mutuamente".
No documento, Wojtyla pede a colaboração dos cristãos com os que querem renovar a humanidade e estabelece uma relação entre a "sabedoria teológica e o saber filosófico". Mas a filosofia e os filósofos devem deixar-se interpelar pela "palavra de Deus" e ter "a força de elaborar o seu discurso racional e argumentativo como resposta a tal interpelação". O Papa recusa correntes da filosofia "hoje particularmente difusas", como o eletismo, o historicismo, o modernismo, o cientificismo, o pragmatismo e o niilismo. E propõe a "possibilidade de se conhecer uma verdade universalmente válida".
No livro Memória e Identidade, publicado há um mês e cuja edição portuguesa deverá sair dentro de dias (ed. Bertrand), João Paulo II volta a insistir nas questões da vida humana, situando-os no campo da luta entre o bem e o mal: "Se o homem pode decidir sozinho, sem Deus, o que é bom e o que é mau, pode também dispor que um grupo de pessoas deva ser aniquilado; decisões deste género foram tomadas, por exemplo, no III Reich por pessoas que, tendo chegado ao poder por meios democráticos, se serviram do mesmo para actuarem os perversos programas da ideologia nacional-socialista que se inspirava em pressupostos racistas."
O mesmo aconteceu com o comunismo na ex-União Soviética e nos países sujeitos à ideologia marxista, afirma . "Neste contexto, se perpetrou o extermínio dos Hebreus e de outros grupos como as etnias ciganas, os agricultores na Ucrânia, o clero ortodoxo e católico na Rússia, na Bielorrússia e para além dos Urales" e outros casos.
Para Wojtyla, depois da queda desses "regimes construídos sobre as ideologias do mal" e do fim dessas formas de extermínio, resta agora "o extermínio legal de seres humanos concebidos e ainda não nascidos", mais um caso "de extermínio decidido por parlamentos eleitos democraticamente, apelando eles ao progresso civil das sociedades e da humanidade inteira". E há ainda as "fortes pressões do Parlamento Europeu para que sejam reconhecidas as uniões homossexuais como uma forma alternativa de família".
É lícito perguntar, conclui João Paulo II, "se aqui não actua ainda uma nova ideologia do mal talvez mais astuciosa e encoberta, que tenta servir-se, contra o homem e contra a família, até dos direitos do homem". E isto acontece "porque se rejeitou Deus como Criador e, consequentemente, como fonte para a determinação do que é bem e do que é mal". António Marujo
(continua amanhã)

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