Novos proprietários revitalizam antigos bairros económicos de Lisboa

À medida que os primeiros residentes dos antigos bairros económicos de Lisboa vão morrendo, as vivendas vão-se valorizando cada vez mais.
Quem são os novos moradores destes bairros, fruto da primeira política sistemática de habitação social do Estado português?
Por Ioli Campos (texto) e Enric Vives-Rubio e João Cortesão Gomes (fotos)

No pulmão de Lisboa, esquilos, ouriços-cacheiros, melros e rolas animam a pacata vida no bairro de Caselas. "Isto é uma aldeia, continua a ser uma aldeia, caríssima, brutalmente cara", comenta Isabel Araújo, cuja casa, agora com dez assoalhadas, foi avaliada há quatro anos em 500 mil euros. A vivenda veio parar à família quando, há 50 anos, os seus avós concorreram ao programa de casas económicas. As casas eram atribuídas segundo o número e o sexo dos filhos. Ao falecerem os avós, a moradia passou para a mãe de Isabel, filha única, com um custo total de 220 contos (1100 euros). Mais tarde, a mãe doou-lhe a casa. Então, Isabel Araújo fez como muitos dos novos moradores destes bairros - demoliu-a e construiu outra de raiz, aumentando a área para os lados, para trás e para baixo enobrecendo a modesta casa económica.É só em meados dos anos (19)80, quando os primeiros proprietários começam a morrer, que chegam novos casais e a procura destas casas aumenta, valorizando o preço.
Produto da primeira política sistemática de habitação social do Estado português, estes bairros começaram a ser construídos em locais periféricos, sobre terrenos baratos. Baseando-se num misto do conceito de aldeia portuguesa e da "cidade-jardim" britânica, as vivendas eram unifamiliares, com jardinzinho à frente e um razoável logradouro nas traseiras. Uma importante característica, que se pode estar a perder, empobrecendo a riqueza arquitectónica da cidade, é a sua unidade urbanística, nota o sociólogo Luís Baptista, que se doutorou nesta área.
Apesar da valorização, não se podem considerar bairros de luxo, mas talvez seja esse o caminho destas aldeias urbanas. E como é que antigos bairros económicos se transformam em "beaux quartiers"? Primeiro, porque é uma raridade encontrar um bairro sossegado de moradias na capital. Depois, deixaram de ser periféricos para estarem bem situados ou, como no caso de Madredeus, no centro de Lisboa.
Numa colina da cidade, com vista para o Tejo, Madredeus, onde reside o ex-Presidente da República, Ramalho Eanes, é outro caso dum antigo bairro económico que se tem valorizado. Hoje, o som dos cães a ladrar à passagem de estranhos é quase abafado pelo ruído de martelos e perfuradoras. Casas em obras, casas para venda, casas novas e casas originais, algumas degradadas, compõem não só o cenário deste bairro, mas também o de Santa Cruz de Benfica, de 1958, último desta espécie. Também aí, como em Caselas e Madredeus, há uma pequena roda-viva de carros a perguntar por casas à venda.
Gilberto Luz mudou-se para Santa Cruz em 2000, comprou duas vivendas lado a lado, derrubou-as e fez um casarão. "Estou aqui porque gosto de Benfica", diz Gilberto, que comprou ambas as moradias a viúvas dos donos originais. Geralmente as viúvas "não querem ficar sozinhas, a casa dá-lhes muito trabalho, preferem comprar um apartamento". Mas também há "muitas casas degradadas porque os filhos não se entendem" neste bairro, que "começa a ser caro".
Objectivo social não
atingido em pleno
Há várias tipologias de vivendas e há bairros que têm mais moradias de tipo grande, outros de tipo pequeno, criando diferentes caracterizações sociais. Ao passo que em Caselas as pessoas chegavam a fazer colectas para pagar o funeral daqueles que não tinham dinheiro e faziam sopa a mais a contar com os vizinhos pobres, quem ia para o Restelo, de 1954, eram sobretudo chefes de família bem colocados profissionalmente, muitos eram directores de serviços públicos.
Lígia Pimentel Serra é filha dos proprietários originais de uma vivenda no Restelo e lembra-se que a renda era de 700$00 (cerca de 3,5 euros), uma das mais caras. Hoje uma das casas mais pequenas está à venda por 550 mil euros, mas o preço é só do terreno pois a moradia é para deitar abaixo. Lígia recusa a ideia de viver num bairro de luxo. "Luxo é lá para cima", na zona alta do Restelo onde ficam as embaixadas. Tem observado a chegada de muitos casais jovens mas lamenta a perigosidade actual. "Dantes passeava-se à noite, agora não, acabou tudo, é extremamente inseguro".
Próximo do Restelo fica um exemplo bastante mais humilde, Terras de Forno, de 1938, mais conhecido por bairro de Belém. A maior parte das casas só tinham um piso e o logradouro era mais reduzido. Mas, até aí se começam a construir novas casas, acrescentando caves e pisos superiores, apesar de ainda albergar famílias carenciadas.
Na Encarnação, o maior bairro deste género construído, com 1130 casas, a diferenciação social entre antigos moradores humildes e novos moradores mais abastados faz-se sentir claramente. Grandes moradias com cave e dois andares, garagem e grandes logradouros estão ao lado das casas originais a precisar de obras. Se numas se plantam coloridas flores, noutras cultivam-se couves, grelos, nabiças e cenouras.
Cacilda Ribeiro tem 70 anos, mora ali há 15, e explica que também demoliram a casa original, demasiado pequena. "Para ficar aqui como estava, preferia ficar num apartamento", diz. Consciente disso, o marido, que trabalha na construção civil, deitou a casa abaixo e fez outra mais espaçosa, mas mantendo o quintal, como é obrigatório por lei. "Morar aqui é estar no paraíso. É como uma aldeia, dizemos bom dia e boa tarde. É um ambiente calmo e familiar". E apesar de continuar pouco central, já é bem servido por autocarros. "Antigamente", conta Cacilda, "não havia autocarros. O senhor aqui ao lado ia de bicicleta até ao aeroporto".
Apesar do cenário ser semelhante, cada bairro tem uma história própria e uma evolução diferente que está relacionada com a tipologia de vivendas original e com o perfil dos moradores, e também com a localização na Lisboa do século XXI.

Sugerir correcção