Estaleiros navais de Gaia ameaçados pelo Polis

Local destinado a estacionamento
Empresa espera que o bom senso prevaleça, mas admite recorrer aos tribunais contra decisão da câmara

Jorge Marmelo

A Socrenaval, empresa proprietária dos estaleiros navais de Vila Nova de Gaia - os últimos a manter viva a tradição de construção dos típicos barcos rabelos por métodos artesanais -, recebeu nos últimos dias um ofício da Gaiapolis, sociedade para o desenvolvimento do programa Polis no concelho, informando que aquele equipamento terá que abandonar o local onde se encontra, junto às caves do vinho do Porto, para ali ser construído um parque de estacionamento. Uma decisão que o administrador da empresa, António Sousa, afirma não compreender, por constituir "um atentado ao bom senso", prometendo recorrer aos tribunais para fazer frente às pretensões da Gaiapolis."Os projectos do programa Polis deviam defender os valores patrimoniais e culturais das zonas que estão a ser objecto de intervenções, mas aqui estão a fazer exactamente o contrário", alega António Sousa, que tem do seu lado o facto de uma anterior tentativa de encerramento intentada pela Administração dos Porto do Douro e Leixões ter sido parada pela justiça. A seu favor tem ainda uma moção aprovada pela maioria da Assembleia de Freguesia de Santa Marinha, demonstrando "preocupação" pelo processo em curso, um ofício do Instituto Português do Património Arquitectónico declarando "apreensão" e mesmo um documento da Gaiapolis, de Outubro de 2001, no qual se diz que é "fulcral" manter os estaleiros no local, "em condições a definir futuramente".
"Não percebo. Estava combinado que os estaleiros ficariam aqui e que cederíamos uma parte de terreno para o parque de estacionamento, passando a parte mais pesada da nossa actividade para a Afurada, mas agora as pessoas mudaram e muda tudo, apenas porque o prazo para acabar o Polis termina no fim do ano", disse António Sousa ao PÚBLICO. Este responsável recusa também a alternativa de mudar as instalações para um local "a montante da Ponte de S. João", sugerida pela Gaiapolis, uma vez que "não faz sentido retirar os estaleiros do seu contexto histórico e patrimonial". "O centro histórico de Gaia deve ser encarado como um todo, com as caves, os barcos rabelos e os estaleiros."

Um estaleiro "horroroso"Para o presidente em exercício da Câmara de Gaia, Jorge Queiroz, a pretensão da Socrenaval não faz, todavia, qualquer sentido. Ao abrigo do Polis, todas as concessões existentes na área de intervenção foram anuladas, pelo que, segundo o autarca, o estaleiro vai mesmo ter que abandonar o local. "Mas isto não quer dizer que vai ser amanhã", disse Queiroz ao PÚBLICO. "Temos todo o interesse que fiquem em Gaia, mas noutro sítio", acrescentou o edil, segundo o qual o actual espaço da empresa "não tem condições para ser mais do que um estaleiro horroroso e uma carpintaria".
Considerando que os argumentos da Socrenaval "não passam de uma teimosia", Jorge Queiroz garante que a zona manterá a memória da construção naval, estando prevista a instalação de um monumento alusivo numa praça que será ali criada, mas adianta que a saída do estaleiro obedece à "evolução natural". "A Socrenaval vai ter que perceber que a lei é igual para todos", disse.
"Não se compreende que se esteja a tentar musealizar uma tradição que está viva", estranha Alexandra Lage, investigadora da área patrimonial, segundo a qual a importância do estaleiro reside precisamente na sua contextualização e enquadramento. Esta estudiosa critica também a possibilidade de transferir o equipamento para um local afastado da zona histórica de Gaia. "Seria um absurdo, não nos interessa um epitáfio, porque isso significaria que isto morreu", diz António Sousa, defendendo que o interesse turístico da zona não se pode resumir às áreas de lazer que têm vindo a multiplicar-se, sem ter em conta a história.
"O fim dos estaleiros seria uma perda irremediável", considera este responsável, que afirma "esperar que o bom senso prevaleça sobre a precipitação" dos responsáveis políticos. Caso contrário, admite recorrer a todos os meios ao seu dispor para proteger o "legado" que pretende deixar à comunidade, mantendo em actividade, por exemplo, os últimos calafates do país.
A fazer rabelos há cinco
gerações

Tudo começou com o trisavô de António Sousa, ainda no século XIX e num tempo em que, entre a Ponte Luís I e a Afurada, existiam 13 estaleiros construindo as embarcações que subiam o Douro para abastecer a cidade do Porto de víveres e, sobretudo, trazer o vinho generoso. O resto da história é mais ou menos conhecido: os rabelos tornaram-se um dos símbolos máximos da região, suscitando interesse em todo o mundo. Ao contrário dos restantes construtores, a Socrenaval subsistiu, mantendo-se fiel a um nicho de mercado pequeno, mas que lhe permite ser rentável. Por isso, e segundo António Sousa, praticamente todos os rabelos que existem no Porto, em Gaia e na Régua foram construídos nos estaleiros navais fundados pelo seu trisavô, os quais continuam a assegurar a sua manutenção, a reparar traineiras e barcos de recreio e a executar as embarcações turísticas que, inspiradas nos rabelos, começaram a sulcar as águas do troço final do Douro há alguns anos. "Oitenta por cento da nossa actividade relaciona-se com as embarcações tradicionais", assegura o administrador. J.M.

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