QUANDO O PORTO RECUPEROU O QUE ERA SEU

Associação Amigos do Coliseu do Porto comemorou o seu décimo aniversário com um concerto versátil. Orquestra Nacional do Porto, GNR e Pedro Abrunhosa foram alguns dos nomes que se uniram à iniciativa. Por Manuel Assunção

"É uma honra não estar aqui a distribuir hóstias." Nem toda a gente se atreveria a dizê-lo em voz alta - quanto mais ao microfone -, mas a frase de Sérgio Castro, vocalista dos temporariamente reunidos Trabalhadores do Comércio, funcionou como uma espécie de materialização da memória colectiva das pessoas reunidas anteontem à noite no Coliseu para assistir ao espectáculo que marcou o décimo aniversário dos dias em que, nas palavras de Marco Saraiva, um dos muitos espectadores presentes, "a cidade recuperou o que é seu". Há mais ou menos dez anos - Agosto de 1995 -, uma grande manifestação, encabeçada por importantes nomes da cultura, da política e de outros ramos da cidade do Porto, foi o momento decisivo de um processo que acabou por inverter o destino a que o Coliseu parecia condenado: ser uma matriz da Igreja Universal do Reino de Deus, que entretanto havia acordado a compra da histórica casa de espectáculos com a seguradora Aliança/UAP. "O Coliseu é nosso!" foi o grito mais ouvido na altura, por entre um ou outro rasgar de apólices. Anteontem, num tom mais sereno, não deixou de ser repetido três ou quatro vezes por quem ia aparecendo no palco. Neles, sucederam-se a Orquestra Nacional do Porto, o Círculo Portuense de Ópera, a Musa ao Espelho - um novo projecto liderado por José Carlos Tinoco que alia poesia e música -, Trabalhadores do Comércio, GNR e Pedro Abrunhosa, que não quiseram faltar ao evento organizado pela Associação Amigos do Coliseu do Porto, a sociedade criada em 1995 para lutar contra a provável mudança de ramo do edifício e que, a troco de três milhões de euros, acabou como sua proprietária. Abrunhosa, então no auge da sua carreira, ficou ainda mais famoso por se ter acorrentado ao Coliseu durante a manifestação na Rua de Passos Manuel. Anteontem, entre duas músicas, voltou a mostrar as algemas, recordando um episódio com dez anos. "Enquanto estava algemado recebi um telefonema do meu pai, que me disse: "Estou a ver-te na televisão. Presumo que não venhas jantar"".
Como não podia deixar de ser, com a sala repleta de "amigos" do Coliseu, houve consenso na opinião de que a mobilização de 1995 valeu a pena. "O facto de não ter passado para uma seita religiosa e ter continuado ao serviço da comunidade e da cultura foi bom para o Porto", sublinhou Luís Miguel Oliveira, um dos vários que também destacaram o papel que o recinto desempenhou enquanto sala de cinema. A seu lado, Cláudia Oliveira recordou a "história e imponência" do edifício.
Maria José, uma professora aposentada de 68 anos, teria "sete, oito anos" quando entrou pela primeira vez no Coliseu para ver circo. No mesmo grupo, Manuela, de 65, diz que a sala tem um "valor inestimável" para a cidade e que teria sido uma "grande perda" se tivesse deixado de servir propósitos culturais há dez anos. Do movimento que "salvou" o maior recinto de espectáculos do Norte para a arte, destaca o "enorme entusiasmo", "próprio da gente do Porto".
Numa noite de excepção, até se ouviu música pelos corredores do Coliseu e, no intervalo do espectáculo maior, houve tempo para desfrutar da Orquestra do Salão Jardim Passos Manuel e dos dotes vocais de uma dezena de alunos da Academia de Música de Vilar do Paraíso. Lá dentro, pouco depois, a versatilidade da noite continuou com os GNR, com um cinquentenário Rui Reininho orgulhoso. "Estivemos cá há dez anos e agora fazemos questão de estar cá outra vez", disse ao PÚBLICO. Resgatar o Coliseu para a sua vocação cultural foi, segundo o cantor, também "uma grande conquista para o pop-rock". O modo como uma comunidade foi capaz de se unir pela sala enche de orgulho o vocalista do GNR, um dos rostos mais activos no movimento de há uma década. "Foi emocionante pensar que nem tudo está assim tão mal como às vezes parece. Se as pessoas se unem pela cultura... Dessa altura recordo-me de coisas tão pungentes como o homem e a mulher de rua me dizerem: "Força, Reininho! O Coliseu é nosso!"". Na apresentação do evento, o actor António Reis resumiu: "O Coliseu era a grande catedral do espectáculo e não podia deixar de ser outra coisa".

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