Rafael Bordalo Pinheiro Morreu há 100 anos o criador do Zé Povinho

Foi um génio na cerâmica e no desenho, criticando lealmente e sem rancor todos os poderes da época em que viveu. Ainda hoje, as criações daquele que é considerado o fundador da BD portuguesa espantam. Apesar disso, o Museu Rafael Bordalo Pinheiro, em Lisboa, está fechado desde 1999. Por Carlos Câmara Leme

Faz hoje 100 anos, na madrugada de 23 de Janeiro de 1905, morria, de uma forte lesão no coração, um dos mais portentosos criadores da cerâmica, desenho e da caricatura portugueses - Rafael Bordalo Pinheiro. Se no século XX tivemos Stuart Carvalhais e João Abel Manta, ao nome de Rafael Bordalo Pinheiro - ou simplesmente Bordalo - está associado um dos bonecos maiores da nossa história estética, artística e política: o Zé Povinho, com ou sem manguito. Não só povoa o nosso imaginário, mas também o discurso ideológico e político e, sobretudo, a vida quotidiana dos portugueses desde que foi criado em 1875. Descontadas as devidas proporções, o Zé Povinho português só pode ser comparado ao John Bull inglês ou ao Tio Sam americano.Rafael Augusto Bordalo Pinheiro nasceu a 21 de Março de 1846, em Lisboa. Era um boémio que desiste tão depressa como entra nas diferentes instituições em que se matriculou - Academia das Belas-Artes, no Curso Superior de Letras e na Escola Dramática. O pai Manuel Maria, preocupado com o rumo do filho, emprega-o em 1863 na Câmara dos Pares, sem saber o que estava a fazer: esse foi o palco ideal para Rafael se aperceber das intrigalhadas da vida política de então e dar-lhe ideias para libertar a sua veia humorística.
Mas a caricatura aparece por brincadeira (Bordalo "dixit") na sua vida. É com "O Dente da Baronesa" que se vai espraiar em 1870 numa folha de propaganda típica da época. Ele próprio confessou: "Comecei a sentir um formigueiro nas mãos e vai pus-me a fazer caricaturas." Para ele, "caricaturas é estragar o estuque de cada um com protesto de senhorio".

O eterno Zé Povinho1872 marca a entrada de Bordalo no mundo dos quadradinhos (ver texto nestas páginas) e aí, segundo o historiador João Medina, um dos maiores investigadores da figura do Zé Povinho, o artista pode ser considerado "o pioneiro" daquilo a que hoje chamamos banda desenhada com a publicação de "Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa". No mesmo ano sai o frontispício do jornal "Artes e Letras" - e do "Almanach das Artes e Letras" em 1874. Uma das colecções mais significativas enquanto criação, a de "Os Theatros de Lisboa", chega ao grande público em 1875.
Nesse ano aparece o boneco dos bonecos, o herói dos heróis, o eterno Zé Povinho. O boneco que ainda hoje nos continua a perseguir aparece no número 5 da revista "A Lanterna Mágica". Segundo José-Augusto França - estudioso de Bordalo Pinheiro -, "será uma personagem constante. Através da obra de Bordalo Pinheiro, e muito para além dela, até à actualidade". Para o investigador (em "Rafael Bordalo Pinheiro", Bertrand, 2ª edição, 1978), "será (...) imagem e símbolo do povo português, enganado, sacrificado mas refilão, capaz de riso e sorriso nos baldões da história que se faz em ele - mas à custa dele..."
Há, reduzindo um pouco as coisas, dois Zé Povinhos apesar de terem os mesmos objectivos - ridicularizar os poderes, todos os poderes: político, económico e religioso. O primeiro está associado à albarda que significa a opressão do Estado que cavalga sobre todos, e Bordalo revolta-se contra a besta de carga que o povo é. O segundo aparece muito mais tarde, quando o seu autor já está associado à Cerâmica das Caldas (ver texto nestas páginas), e é o mais conhecido dos Zés Povinhos - o do manguito, ainda hoje espalhado por muitas tascas e restaurantes de norte a sul do país. Um gesto que pode ter duas leituras possíveis: um lado mágico para quebrar o mau-olhado que os políticos têm sobre o povo e, porventura, um mais radical, a estilização do sexo masculino sob a forma de uma linguagem gestual, brutal, que exprime de uma forma rude a relação de opressão que os poderes têm sobre o povo.
"O Zé Povinho continua a ser um bom exemplo dos nossos defeitos e das nossas taras: é fundamentalmente um homem de mãos nos bolsos, apático, conformista, desejando apenas menos impostos, menos repressão mas incapaz de ultrapassar o labrego que sempre foi", sustenta João Medina. "Portugal é assim. Basta ver a situação em que estamos a viver hoje a pouco tempo de eleições. Não há outra representação que desenhe tão bem o que somos, os portugueses e Portugal", afirma o historiador.

"Em tudo e de tudo um artista"
A 31 de Julho de 1875, três anos depois do lançamento de "A Lanterna Mágica" o periódico chegava ao fim e, com ele, diz José-Augusto França, "o primeiro período da obra de Bordalo". Tinha cerca de 30 anos e Alberto Pimentel traça-lha o retrato: "Bastos e longos cabelos negros, olhar vivo e incisivo, feições distintas, desembaraço elegante, animação verdadeiramente peninsular." Júlio César Machado é mais incisivo: "Bordalo era em tudo e de tudo um artista."
Mas no ano do aparecimento do Zé Povinho recebe um convite irrecusável para ir para o Brasil e zarpa para o Rio de Janeiro. No "Mosquito", onde colaborava duas vezes por semana, continua a trabalhar debaixo de "stress" - "só à última da hora, quando só dispunha do tempo estritamente necessário para desenhar, metia mãos aos trabalho, tirando o jaquetão inglês, atirando-o sobre uma cadeira (...)". A seguir nascia a criação.
Depois do "Mosquito", trabalha no "Psitt!!!" e no "Besouro", mas a verve de Bordalo não pára de zurzir em gregos e troianos. Mas sempre, como sublinha João Medina, "a sua crítica foi leal no repúdio ao sistema monárquico constitucional - um ódio sem acintes mas lutando sempre pelos ideais republicanos". Enquanto está no Brasil não esquece o solo pátrio e colabora, entre outros periódicos, no "Álbum das Frases", no "Nexis da Língua Portuguesa" e, em de Maio de 1879, inicia a sua colaboração no célebre "António Maria" - dirigido criticamente ao nome grande da Regeneração "António Maria" Fontes Pereira de Melo (que terá duas séries).

O regresso do Brasil Em 1880, registe-se outro grande momento da sua obra, o "Álbum das Glórias", com desenhos seus e textos de João Rialto e João Rebaixo (a Fragmentos editou em edição fac-similada, em 1989). Pela pena de Bordalo Pinheiro, em desenhos magníficos passa toda uma constelação de personagens como Ramalho Ortigão, o belíssimo Eça de Queirós segurando com a mão direita o seu eterno monólogo, Gomes de Leal com o seu charuto na boca, a bela imagem de Oliveira Martins, e os desenhos deliciosos de, entre muitos outros, Camilo Castelo Branco e o inimitável Bulhão Pato.
Um ano mais tarde, organiza-se o Grupo do Leão, formado por António Ramalho, João Vaz, José Malhoa, Silva Porto, Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro, que se bate pela emergência de uma nova arte em Portugal - o naturalismo.
O grupo reunia-se no Café Leão de Ouro da Rua do Príncipe (hoje 1º de Dezembro), iniciando um ciclo de exposições anuais conjuntas a partir de 1881, as quatro primeiras sobre quadros modernos e as outras de arte moderna. Quatro anos depois, Bordalo homenageia os seus companheiros de estrada com o painel decorativo "Café Leão de Ouro".
Os últimos anos da sua vida (morreu aos 59) são dedicados à cerâmica: é aqui que aparece o Zé Povinho do Manguito. É todo um investimento artístico que não se pode ignorar e há mesmo quem considere que o Bordalo ceramista não pode - nem sobretudo deve - ser separado e muito menos depreciado do do Bordalo caricaturista e desenhador.

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