Torne-se perito

António Mega Ferreira "É um filme que continua e que tem lá no meio um drama"

"Meti dentro das minhas categorias
de vida a iminência da morte."

António Mega Ferreira recebeu o sobrescrito por engano. Em vez de ser enviado para o seu médico, o diagnóstico foi-lhe dado em primeira-mão: era um adenocarcinoma colo-rectal, lia-se. Cinco minutos depois estava com o médico ao telefone e lembra-se de ainda ter que ser ele a sossegá-lo: "Oh sôtor, tenha calma!". Deve ser de feitio, mas ainda bem que o acaso trocou as voltas à carta. Foi da maneira que tratou de agir a frio, sem pensar. Ouviu em primeira opinião que era preciso ser operado e não esperou por segunda. Soube desde logo que "tudo seria feito em Portugal. Nasci em Portugal, morrerei em Portugal". Parecia-lhe absurdo cada vez que lhe perguntavam "porque é que não vais a Londres?". "O que é que me fazem em Londres que não me fazem em Portugal?", respondia.
Dez dias depois estava a ser operado. No pós-operatório houve complicações e teve que parar, mas só em sentido literal - "não podia andar". Continuou a coordenação da Expo "98, mas a sede de operações passou a ser um objecto forrado de veludo verde com vista para Lisboa a que passou a chamar de "sofá inteligente", porque era deitado nele que tinha reuniões que levaram à preparação da exposição universal: "Ali se discutiam contratos", era ali "que mandava vir", era ali "que lia", "que ouvia música de manhã à noite", relembra o escritor.
A certa altura, criou-se "um abcesso monstruoso. Parecia um balão. Foi um processo terrível que me conduziu às portas da morte", corria Setembro de 1997. Durante um mês esteve imobilizado. Até que chegou o dia em que apareceu para a inauguração "alegre e contente, de charuto na boca e mais nada. E estou bem muito obrigado".
Superou esse "episódio da vida", uma saga que durou um ano, quando tinha 47 anos. Entende a sua vida como "um filme que continua e que tem lá no meio um drama, que poderia ter sido o fotograma final: fim". Mas não foi.
Não mudou a sua forma de encarar a vida - do tipo "decidir fazer a viagem que nunca fiz" -, o que se alterou foi a sua relação com a morte. Era de "pânico" e conseguiu naturalizá-la. "Meti dentro das minhas categorias de vida a iminência da morte." E também serviu para perceber o que queria fazer quando acabasse a Expo: "Escrever, não quero fazer mais nada de executivo, é o que eu mais gosto de fazer". Até aos 47 anos publicou seis livros; desde a doença "publiquei nove livros. Eu avisei!".
Daquele tempo ficou a "Hora de visita", um poema que fala das expectativas de quem está imobilizado numa cama - "Não era ninguém, não era?" - e ouve um barulho no corredor - Os passos lá fora/ A porta que anuncia". É um poema mas "dava um romance".
Mega Ferreira lamenta que o cancro seja lido como "fatal" e que esteja rodeado "de pudor hipócrita que não ajuda nada quem está na situação". Para si, devia haver uma megacampanha de "outdoors" pela positiva: "Foi-lhe detectado cancro/ combata-o já/A taxa de sobrevivência é de 60 por cento!", poderia ler-se. Um doente com cancro precisa de ser tratado mais como "combatente pela vida, do que condenado pela morte". "O grosso da população tem sobre o cancro a mesma visão supersticiosa de há 50 anos. O que mudou em combate é astronómico". Catarina Gomes

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