O Presidente da República e o poder de dissolução

A dissolução da Assembleia mereceu um assentimento generalizado dos portugueses, mas foi objecto de críticas apoiadas em pretensos fundamentos constitucionais, como sejam: a dissolução não deveria ter ocorrido porque as queixas se referiam ao Governo e não à AR; o Governo continua a dispor do apoio da maioria parlamentar, pelo que a dissolução é incompreensível, abre caminho à presidencialização do regime e induz instabilidade.Como estas críticas se inscrevem declaradamente numa tentativa de forçar a alteração do actual sistema de governo, devem merecer alguma consideração.Para abreviar, diga-se que só um básico desconhecimento dos sistemas políticos permite que se agite o perigo da presidencialização do regime e isto por uma razão muito simples: em sistema presidencial o Presidente não tem o poder de dissolução. O Presidente dos EUA não pode dissolver o Congresso. Este poder só existe nos sistemas parlamentares (onde é, de facto, um poder do primeiro-ministro) e em sistemas semipresidencialistas (onde é, de facto e de direito, um poder do Presidente eleito por sufrágio universal). Um poder de dissolução livre poderá conduzir a tudo o que a imaginação mais prodigiosa quiser, mas, por definição, nunca à presidencialização do regime. Invoca-se, depois, o pretenso carácter inédito desta dissolução. Pela primeira vez um PR fizera o impensável: dissolver a AR contra a vontade da maioria parlamentar. Nem o insaciável Presidente francês alguma vez se atrevera a tanto. Estas afirmações são proferidas em tom convicto e informado, mas padecem do ligeiro inconveniente de nada terem a ver com a realidade. Na França o primeiro acto do Presidente eleito é dissolver a Assembleia sempre que nela existe uma maioria contrária à maioria presidencial. Também entre nós aquelas afirmações não resistem a essa verificação óbvia: das seis dissoluções que já tivemos, três foram feitas contra a vontade da maioria parlamentar.Em 1983, o Presidente Eanes recusou o Governo que a maioria parlamentar lhe propunha e dissolveu a AR. Em 1987, o Presidente Soares foi ainda mais longe. A maioria na Assembleia demitiu o Governo e apresentou ao Presidente uma alternativa de governo. O Presidente foi radical: deixou o Governo demitido em funções e dissolveu, sim, a Assembleia da República. É difícil imaginar decisão mais implacável contra a maioria parlamentar, mas este registo histórico corresponde perfeitamente à natureza do poder de dissolução em semipresidencialismo.Se as Constituições de semipresidencialismo impõem a eleição directa e universal do Presidente (e entre nós necessariamente por maioria absoluta dos votantes e com um mandato de duração superior e não coincidente com o dos Deputados) é precisamente para lhe conferirem uma legitimidade que o habilite a um exercício de funções independente e não condicionado por qualquer pressão ou vontade da maioria parlamentar. Nesse quadro, a possibilidade da dissolução em circunstâncias como as que agora se verificaram é política e constitucionalmente indiscutível.Quando dissolve o Parlamento, o PR não está a sancionar eventuais malfeitorias cometidas pelo Governo ou pela Assembleia, o que até seria incompatível com a legitimidade democrática, directa ou indirecta, destes outros dois órgãos. O poder de dissolução significa, antes, a tentativa de resolução de uma crise ou bloqueio institucionais através da antecipação das eleições parlamentares.Formando a convicção, de forma inteiramente livre e responsável, que um Parlamento esgotou politicamente as possibilidades de gerar soluções governativas adequadas à superação de uma crise política, o PR, como foi o caso, e através do poder que a Constituição lhe reserva para o efeito, remete a decisão para o Povo, chamando-o a eleger nova Assembleia.É precisamente por se tratar de um poder de livre exercício, subordinado exclusivamente à interpretação que o PR eleito faz do interesse público, que o poder de dissolução identifica, em última análise, a natureza específica do semipresidencialismo. A faculdade de apelar directamente ao Povo, chamando-o a decidir, é um poder determinante nas mãos de um Presidente eleito por sufrágio universal. Com essa possibilidade, o PR é o detentor da chave de funcionamento do sistema político e só essa posição relevante explica, em última análise, por que razão três anos antes da eleição presidencial já começamos a discutir as candidaturas presidenciais.O poder de dissolução não tem de ser exercido de facto, mas a sua simples existência e configuração constitucional como poder de livre exercício do Presidente obriga qualquer maioria parlamentar, por mais absoluta que seja, a ter em conta a opinião do PR, a aceitar a sua magistratura de influência e a conformar-se com o exercício efectivo dos seus poderes. De outro modo, se a maioria parlamentar envereda por um conflito institucional com o Presidente, arrisca a interrupção do mandato e a convocação de eleições para uma altura que não controla.É certo que o PR tem outros poderes importantes, como o poder de veto, as nomeações ou a possibilidade de recorrer preventivamente ao Tribunal Constitucional. Mas todo esse conjunto de faculdades se esvairia se não fosse vertebrado pela enorme força dissuasora constituída pelo poder de convocar eleições e pela legitimidade para o exercício livre deste poder que deriva da Constituição e da sua eleição directa.Sob pena de bloqueios inevitáveis no funcionamento do sistema político democrático, e excluído o sistema presidencialista (que por razões objectivas é impraticável na Europa ocidental), alguém tem de ter o poder de dissolução, o que equivale a dizer, alguém tem de ter o poder de convocar eleições antecipadas. Só há, então, duas hipóteses: ou se atribui este poder ao Primeiro-Ministro (sistema parlamentar) ou a um Presidente eleito directamente (sistema semipresidencialista). Quanto mais livre é o exercício deste poder por parte do PR mais clara é a opção constitucional pelo semipresidencialismo. Daí que, ao contrário do que pensavam os protagonistas da altura, quando em 1982 se limitou o poder de demissão do Governo (o Presidente passou a só poder demiti-lo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições) e se trocou essa limitação pelo alargamento do poder de dissolução da AR, o Presidente viu reforçada a sua posição relativa no sistema de governo (as alterações jurídicas ad hominem comportam estas surpresas...).Mas será a atribuição do poder de dissolução ao Presidente a solução mais adequada? Quando se considera a alternativa disponível -atribuir esse poder ao Primeiro-Ministro- teremos necessariamente de concluir que, entre nós, aquela solução é não só adequada como exigível. Basta ter assistido, nos últimos dias, à forma como a maioria passou a tratar publicamente o PR, para perceber que os poderes presidenciais seriam praticamente esvaziados quando e se o Presidente deixasse de ter a arma dissuasora da dissolução parlamentar. A questão será, então, a de saber se pode a nossa democracia prescindir das funções de racionalização, equilíbrio e garantia proporcionadas por um Presidente eleito para desempenhar tais funções. Intuitivamente, os portugueses nunca prescindiriam do direito de eleger o seu Presidente e têm toda a razão para pensar assim.É que, como a situação portuguesa ilustra eloquentemente, em democracia podem gerar-se maiorias absolutas com líderes mais ou menos escrupulosos. Tendo em conta as debilidades da nossa vida pública, as condições da sua democraticidade e equilíbrio não estariam devidamente acauteladas se uma maioria parlamentar absoluta pudesse governar sem um contraponto institucional de moderação e controlo e, mais ainda, se pudesse ser essa maioria a escolher o momento de realização das eleições parlamentares seguintes.Professor da Faculdade de Direito de Lisboa. Consultor para Assuntos Constitucionais da Casa Civil do Presidente da República

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