O princípio do utilizador-pagador

A instalação de um novo construtor no Norte de Portugal não só permitiria concretizar a ambição possível e legítima de expandir a indústria automóvel em Portugal como ajudaria a travar o declíneo da Região. Uma estratégia que tem na Galiza um aliado de peso

Parece ter entrado em definitivo no debate público da nossa fiscalidade o princípio do utilizador-pagador. A propósito dos hospitais, das universidades e das auto-estradas, aponta-se de um lado o utilizador-pagador como regra elementar de justiça, com o resultado esperado de haver quem por oposição o represente como injustiça elementar.O princípio é de tal modo essencial à reorganização das nossas finanças públicas e à moralização da relação entre o Estado e os contribuintes que seria trágico que o condenássemos por razões de oportunidade política. A oportunidade existe e é boa, criada por medidas fiscais de precipitação evidente. E, quando existe a oportunidade, logo surgem os argumentos: as taxas assentes no princípio do utilizador-pagador agravam as desigualdades sociais, sobrecarregam a classe média, privam os mais pobres do ensino, do saneamento básico e das vias de comunicação. Condena-se por isso o utilizador-pagador como se estivesse em causa a sua generalização, sugere-se em vez dele o acesso gratuito à parte maior dos serviços públicos, o financiamento pelo imposto em vez da taxa.É certo que a cobrança de taxas aos utilizadores dos serviços públicos produz um efeito tendencialmente regressivo, pesando mais sobre quem menos tem. Os cem euros da propina representam mais no orçamento de uma família pobre do que no de uma família rica e o mesmo pode sempre dizer-se das portagens ou das taxas hospitalares. Existem, no entanto, boas razões para que a discussão do utilizador-pagador se faça com ponderação e para que ao experimentalismo legislativo não se responda com o argumento do terror social.Primeiro, importa notar que a regressividade das taxas cobradas sobre os utentes dos serviços públicos é muitas vezes compensada pelo efeito conjunto dos impostos e da despesa pública. Assim, o efeito regressivo das portagens exigidas à população rural do interior deve confrontar-se com a isenção que o IRS concede aos rendimentos agrícolas, ou a regressividade das propinas universitárias com as prestações da acção social escolar com que se apoiam os mais pobres. O efeito regressivo que produzam as taxas de utilização será de somenos importância desde que o conjunto do sistema fiscal e da despesa pública favoreça quem menos tem.Depois, importa notar que o uso dos impostos no financiamento das prestações públicas produz muitas vezes um efeito socialmente mais gravoso que o das taxas. Quando se financiam as auto-estradas ou as universidades "sem custos para o utilizador", está-se em larga medida a fazer com que a parcela da população que não pode adquirir automóvel ou frequentar a universidade sustente prestações que aproveitam a quem tem melhor nível de vida. A "gratuitidade" das prestações públicas oculta muitas vezes uma fiscalidade parasitária, pela qual a classe média obriga as franjas mais desfavorecidas da sociedade a suportar-lhe as preferências. Em tudo isto é importante compreender que o utilizador-pagador não constitui de todo a expressão fiscal do liberalismo. O Estado liberal, esse que se contenta com as funções tradicionais de soberania, pode financiar-se com dois ou três grandes impostos pagos pelo todo da comunidade. É quando o Estado alarga as suas funções e passa a oferecer aos cidadãos escolas, hospitais, museus e aeroportos que se torna necessário encontrar novas fontes de receita e exigir que o utilizador pague pelo que recebe. O utilizador-pagador constitui hoje a forma de garantir a sobrevivência do Estado social e de adequá-lo a sociedades plurais, em que os cidadãos não exigem todos ao Estado os mesmos bens, mas bens que variam de acordo com as suas preferências.Por isso, em vez de diabolizarmos o princípio, devemos preocupar-nos em fixar-lhe as excepções. Existem, claro está, serviços que por serem essenciais a uma sobrevivência condigna não devem ser financiados, inteiramente ao menos, por taxas exigidas dos respectivos utilizadores. Será esse o caso dos hospitais públicos ou do ensino escolar, de que ninguém deve ser excluído por razões de ordem económica; não é seguramente esse o caso das auto-estradas ou sequer das universidades públicas, frequentadas pela grande classe média. Quanto aos primeiros, vale com certeza a pena lutar contra a infiltração do princípio e contra a exclusão que ele traz; quanto aos últimos, é de elementar justiça que o utilizador pague pelo que recebe: não existe ninguém acima, abaixo ou ao lado da classe média que lhe deva suportar os custos da vida em sociedade.O princípio do utilizador-pagador é especialmente importante num país habituado a pensar que pode ter a civilização sem lhe pagar o preço. Num país onde o grosso da população esconde rendimentos, simula o valor dos imóveis e não emite facturas, o utilizador-pagador tem o mérito de nos lembrar o dever fundamental de contribuir para os gastos públicos. Os movimentos que se organizam contra as portagens e contra as propinas não constituem um testemunho da nossa cultura cívica mas da sua falta, exprimem a mesma mentalidade que faz do IRS aquilo que ele é. Existem, portanto, boas razões para saudar o avanço do utilizador-pagador, sendo certo que um princípio só é pedagógico quando seja aplicado de modo coerente. Não se pode esperar que os contribuintes compreendam a filosofia do utilizador-pagador quando ao mesmo tempo que se generalizam as portagens se criam isenções ao sabor do poder local; quando se afirma a gratuitidade do serviço nacional de saúde e se criam taxas moderadoras graduadas pelos rendimentos. Também neste domínio se impõe uma política fiscal com cabeça, tronco e membros: quando os cidadãos pagam pelo que recebem, importa que recebam uma governação de qualidade.

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