Seiscentos anos de música portuguesa no Festival de Poitiers

A edição de 2004 do Festival Colla Voce - Património e Músicas de Poitiers, que decorre entre hoje e dia 29 (domingo) é dedicada a Portugal. A iniciativa da câmara municipal da cidade do centro de França aposta na divulgação de "seis séculos de música portuguesa", que encherá uma dezena de espaços com obras de compositores nacionais. Pretexto para a escolha de Portugal: Poitiers e Coimbra são cidades geminadas há 12 anos, e celebra-se o trigésimo aniversário da Revolução dos Cravos e os 300 anos do nascimento de Carlos Seixas, compositor e organista. De Portugal seguem também para a cidade francesa dois intérpretes: a pianista Ana Telles e o organista João Vaz. Para Ana Telles, este festival é "o paraíso", pois permite-lhe uma aposta na escolha pessoal de autores, pelo que avançou com a música contemporânea, "todo o meu mundo". Como crê que "a composição é uma das áreas que mais melhorou, está com mais força" em Portugal e "há imensa qualidade", escolheu para um dos seus recitais obras contemporâneas de Alexandre Delgado, João Rafael, Carlos Caires, João Pedro Oliveira e Christopher Bochmann (este último é inglês de nascimento, mas reside e leva uma carreira pedagógica em Portugal há 25 anos, já se considera compositor português). Exceptuando a obra de Bochmann, de 1991, todas as outras são posteriores a 1997. Ana Telles quer assim "dar uma visão o mais global possível da produção contemporânea". Este recital é interpretado em piano e electrónica, ou seja, com bandas magnéticas de sons de piano tratados por computador. No outro recital, Ana Telles instala-se num piano "normal" para tocar "clássicos dos séculos XIX e XX" - Emmanuel Nunes, Freitas Branco, Lopes-Graça e Jorge Peixinho. A pianista congratula-se com este festival dedicado a Portugal: "Cresci sempre a ouvir duas ideias - compositor estava morto e era estrangeiro". Na sua vontade de mudar esta concepção, aposta então na divulgação da obra contemporânea nacional, que vive numa "pescadinha de rabo na boca": "É 'difícil', não se ouve, não se divulga, não se conhece, não se produz, logo não se ouve..." Está então na hora de "os portugueses se valorizarem". "Se conseguíssemos que a mentalidade mude..."O organista João Vaz tem uma extensa carreira internacional, e considera que esta edição do Festival de Poitiers é "óptima" para Portugal, mas engloba-a num movimento mais vasto: "As pessoas [no estrangeiro] começam a ter reacções muito favoráveis ao que ouvem, a nossa cultura começa a despertar grande interesse." E avança: "Em 2005 vai haver em Dresden [cidade da Alemanha] um festival também dedicado a Portugal, e há dez anos era impensável fazer iniciativas como estas."No concerto de dia 23, João Vaz vai tocar, entre peças de outros autores, três sonatas para órgão e uma originalmente concebida para cravo compostas pelo "homenageado" Carlos Seixas, e músicas de Frei Marques e Silva e de um anónimo do final do séc. XVIII. Obras tocadas pela primeira vez em França, não editadas, e resultado de todo um trabalho de pesquisa de João Vaz na Biblioteca Nacional de Lisboa.O organista português vai tocar no órgão da Catedral de Poitiers, "um dos mais importantes, do século XVIII, dos poucos que chegaram até hoje, perfeitamente restaurado, uma jóia, típico do barroco francês". Não é igual aos órgãos que Seixas tocava em Lisboa, mas possui "uma imensa qualidade e riqueza tímbrica"."Não reduzir ao fado" O director artístico do festival, Michel Boédec, diz-nos que era a ocasião ideal para "fazer um ponto da situação da música de Portugal". Deseja-se então "dar um panorama de 600 anos, com obras do século XV mas também de música contemporânea, como Emannuel Nunes, e jovens compositores como Pedro Amaral e João Rafael." A música portuguesa não é muito ouvida em França, mas Boédec é peremptório: "Há muita coisa a descobrir. Conhece-se Emmanuel Nunes porque vive em Paris e ensina no Conservatório, mas os grandes compositores não são conhecidos - a música para piano do fim do século XIX ou começo do século XX, Freitas Branco ou Lopes Graça, e era importante divulgá-los. E também a música vocal..." Ou seja, perceber que "a música portuguesa não se limita à música barroca e ao fado, há uma grande diversidade". O director lamenta a tendência francesa para "reduzir a música portuguesa a essa zona tipicamente popular - é claro que é importante, Amália é muito importante, mas há também músicos da área clássica que são tão importantes quanto Scarlati, por exemplo". O Festival Colla Voce é organizado pela Câmara de Poitiers, com o apoio da região de Poitou-Charentes e do Ministério da Cultura, e teve como ponto de partida aproveitar o Verão para rentabilizar o património histórico local. Os concertos e recitais realizam-se em cinco igrejas, um cine-teatro, e os auditórios do conservatório e pequenas salas onde se oferece pequenos-almoços para os melómanos e os artistas se encontrarem, tomarem café e discutirem o que se vai passar nesse dia. "É importante que o público, os compositores e os intérpretes dialoguem, fora de todo o protocolo e rigidez dos concertos à noite", diz Boédec. Serão ainda exibidos dois filmes portugueses - "Vai e Vem", de João César Monteiro (26 de Agosto), e "Um Filme Falado", de Manoel de Oliveira.As anteriores edições - "em 2004 houve muita música medieval, e música italiana" - tiveram um número médio de 4500 espectadores, mas só contabilizados os concertos pagos. Este anos, um terço das iniciativas são gratuitas - "a porta da cidade está aberta para todos virem à festa." A edição de 2005 concentrar-se-á essencialmente no órgão e na música improvisada. uE06EFestival Colla Voce - Património e Músicas de Poitiers21 a 29 de AgostoAna Telles. Recital 1 de piano no Auditório Saint-Germain do Conservatório. 24 de Agosto (3ª feira), 18h; Recital 2 de piano e electrónica, no Auditório Saint-Germain do Conservatório. 26 Agosto (5ª feira), 18hJoão Vaz. Concerto de órgão na Catredal de Poitiers. 23 de Agosto (2ª feira), 18h.

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